13.8.06

SOLINGEN - Aquelas criaturas tão estranhas - 1995


Luquino quase desfaleceu quando doutor Adãozinho, sem aviso prévio, preâmbulos guturais, ou qualquer palavra amaciante, lhe fez a convocação para, sem quê nem mais, assumir a função de barbeiro na cidade onde exercia oposição política e o férreo poder sobre várias cabeças de gado e gente. Já estava tudo montado: cadeira reclinável, espelho, guarda-pó, e tudo o mais necessário à necessária atividade.
Quando Luquino pensou em opor negaças, doutor Adãozinho entendeu como anuência e deu por selado o compromisso, virando-lhe as costas e descendo os batentes até o jipe.
- Amanhã você começa. Fique por aqui até eu lhe arranjar casa na cidade.
Mas doutor, eu nunca fui barbeiro, não sei da profissão, pensou Luquino em falar, mas quando abriu a boca para realçar suas incapacidades, enfileirar suas reticências, engoliu a poeira do jipe que já arrancava.
A mulher, antevendo morar na cidade, tentava inflar suas qualidades. Ele cortava o cabelo dos meninos, fazia sua própria barba. Seria fácil fazer a dos outros. Além do mais, não era muito diferente cortar rente o capim para o gado, o arroz já maduro, onde as borbulhas da água lodosa eram até mais densas que a espuma de barbear. E a poda das fruteiras? Que poderia haver de mais parecido com um corte de cabelo que o desbaste de uma frondosa mangueira? Que fazia Luquino no pé de fícus senão coisa idêntica a um corte da moda, cheio, artístico? E pelar um porco? Mesmo sem se poder usar água fervente, ninguém teria a barba mais dura que as cerdas de um suíno.
A mulher sonhava por entre roncos com um fogão a gás de quatro bocas enquanto Luquino treinava com uma peixeira o segredo de afiar uma navalha sobre a alça de um estribo.
Dia seguinte, cedo, cedo, o primeiro feirante já encontrou Luquino de guarda-pó e um sorriso de resignação. Chegara cedo para examinar aquela estranha ferramentaria. Descobriu o manejo da cadeira, suas graduações e ângulos; atinou com a serventia da bombilha de borrifar água perfumada; dispôs tigelas e pincéis, solas de afiar, abrasivos; testou máquinas de corte e tesouras. Olhou, demorado, a pedra-ume. Tudo em ordem. E lá no canto, num estojo quase luxuoso, dormitava o drácula dos seus sonhos, a geladeira de seus suores, o descontrole de seus nervos, os intervalos mudos de sua fala: a navalha. Uma solene Solingen, imaculado brilho, nobreza silenciosa, corte de assobio. O cabo de madrepérola escondia o fio invisível, o azougue mágico que podia cortar a luz ao meio, dividir um grão de ar; suave como nada, veloz como um susto. Abriu o estojo, colocou-o sobre a mesinha e recuou um pouco para admirar aquela terrível maravilha.
E teriam suas mãos calosas suficiente delicadeza para brandi-la com suavidade? Assombrava-o a diferença entre sua artística forma e a haste tortuosa do pereiro suportando, como uma cunha, a metade de uma lâmina da gillete, o único aparelho de barbear que conhecera até então.
Olhava, magnetizado, aquela perturbadora coisa que poderia modificar sua vida, para o bem ou para o mal, e não percebeu que uma pequena multidão já formara um semicírculo na calçada, sem que ninguém ousasse ultrapassar o invisível cordão de isolamento. Luquino tentou cativar a primeira vítima com um sorriso; quase fez uma careta.
A pequena platéia silenciou e fendeu-se para dar passagem a doutor Adãozinho. Um metro e cinqüenta de pessoa, dois metros e vinte de autoridade e empáfia.
- Tudo pronto, Luquino? Vim fazer a inauguração!
E foi sentando na cadeira. Luquino pediu a Deus para ser transformado em estátua de sal. Ah, se ainda existisse Pôncio Pilatos para que ele padecesse sob seus poderes! Quis ser crucificado, morto e sepultado. Desceu aos infernos e no terceiro piscar de olhos ressurgiu dos mortos!
Reclinou a cadeira e olhou temeroso aqueles dois palmos de barba, virgem de lâmina, e tentou imaginar a fragilidade daquela pele branca, delicada, protegida do sol durante tanto tempo. Quantos sinais traiçoeiros dormitavam por baixo daquele cipoal grisalho? Que escaras em carne viva aguardavam sua imperícia e selariam sua desgraça? Enquanto espalhava a espuma, Luquino sentia o olhar fuzilante do doutor Adãozinho bater nos caibros, refletir-se no espelho e despejar aquele azul fulminante que poderia transmutar-se em cólera a qualquer momento.
Acordou a Solingen de sua fresta, afastou a lâmina numa rotação de 270 graus - lâmina entre polegar e indicador, cabo entre anular e mínimo - e respirou fundo. Se não houve um surdo murmúrio na platéia, os tímpanos de Luquino inventavam ruídos. Seus olhos confirmaram a pedra-ume pronta para um emergencial estancamento de sangue e com um seja feita a vossa vontade, aqui na terra como no céu, fez a lâmina deslizar sobre o queixo de pele flácida. E lembrou da mulher que lembrava do fogão a gás e a face do doutor Adãozinho passou a ser um campo de cerrado mata-pasto, uma terrível capoeira onde ele não poderia desdentar sua estrovenga. Pressentiu o sinal de carne esticando o pescoço para ser decepado e mandá-lo ao inferno. Rodeou-o carinhosamente como fazia com os tenros pés de milho perdidos entre as ervas daninhas. O azougue da Solingen ia deslizando entre rugas e escaras, acompanhando mansamente a topografia da ossuda mandíbula. Até agora nenhum raio de sangue naquela pele branca, de suíno. A mão hesitou nas proximidades do sextavado pomo e nesse instante o Satanás lhe soprou, num desvão qualquer de seu toldado juízo, um pensamento: se tremesse agora ia ser uma sangueira feia, e não haveria salvação. Se isso acontecesse, o único remédio era continuar o serviço, cortar fundo, ir até o osso do pescoço, já quase do outro lado e fugir, deixando atrás de si uma goteira de sangue e mistério que o povo relembraria tempo adentro. Ou, se as pernas não concordassem com a fuga, era só levantar o guarda-pó e, com um tênue risco sobre a barriga, precipitar uma avalancha de tripas que os cachorros devorariam junto com o seu medo. Disfarçou um sinal da cruz e deixou a navalha trabalhar.
Nenhum corte, nenhum poro supurado; os sinais intactos, as escaras intocadas. Na recusa do loção de barba, provocou uma nuvem de pó sobre aquele campo limpo, sobre a melhor broca de sua vida. Doutor Adãozinho levantou da cadeira, inflou as bochechas contra o espelho, acariciou o queixo com as costas da mão e olhou para Luquino:
- Muito bem, rapaz. A barbearia é sua!
E saiu. A até então contida assistência invadiu a barbearia com gritos, vivas e urras. Luquino quis chorar, mas disfarçou olhando o triângulo peludo da bela moça da Pirelli. Pensou nos meninos, na mulher que pensava no fogão a gás e falou como se tivesse que fazer discurso:
- O próximo menino lá de casa vai se chamar Solingen!
De uma foto de página inteira da Manchete colada na parede, Bertrand Russel sorria como uma sexagenária Mona Lisa.