19.6.07

A GARRAFA


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ÀS CINCO E TRINTA DA MANHÃ, ao abrir a porta para pegar o jornal, o morador da quadra 25, lote 6, da rua Portal do Paraíso encontrou uma garrafa de vidro, fechada com uma rolha de cortiça, na soleira de sua porta. Escura, não deixava ver se algo havia em seu interior. O jornal do dia estava atirado dois degraus abaixo. Nem pegou os jornais. Passou sobre a garrafa, olhou a garrafa, cheirou a garrafa e afastou-se, parando no jardim, a cerca de três metros do inusitado objeto, protegendo-se atrás de um canteiro de rosas, como se pressentisse algum perigo. Começou a examinar de longe aquele objeto estranho e inoportuno, que não devia estar ali. Como não sabia o que fazer, ficou andando de um lado para outro até que resolveu chamar os vizinhos.
Chamou os vizinhos da direita e da esquerda, com quem não mantinha relações estreitas, apesar de três anos morando lado a lado, comunicou a inusitada aparição e pediu a opinião dos dois. O vizinho da direita, ainda sonolento, achou que aquilo lá era o que parecia: uma garrafa. Por precaução sugeriu chamarem os bombeiros, a polícia, a defesa civil. O vizinho da esquerda, imaginando não se sabe o quê, afastou-se dez metros da cena e disse não saber o que aquilo poderia ser, além de ser, na aparência, uma garrafa.
O morador da quadra 25, lote 6, acordou a família e tentou convencer a mulher a levar as crianças até à casa do cunhado, seis quadras adiante. Aquele objeto conhecido podia ser um enorme problema caso não fosse uma inocente garrafa. E sendo algo mais que uma garrafa, poderia trazer constrangimento ou perigo. Podia ser uma bomba, poderia conter um líquido envenenado, disse aflito morador da quadra 25, lote 6. Mas pode ser só uma garrafa de leite que um leiteiro deixou por engano, disse a mulher do intranqüilo morador. Ah, não! Retrucou a filhinha do casal, a de oito anos, bem que pode ser uma garrafa com uma mensagem! Podia conter uma mensagem, sim, já que era uma garrafa, e transportar mensagens sempre foi a principal finalidade das garrafas. Afinal garrafas trazendo mensagens em seu interior são acontecimentos corriqueiros desde que existem garrafas, náufragos e crianças. O que não se sabe é do conteúdo de tais mensagens. Pode ser uma simples brincadeira ou uma verdade perturbadora e perigosa.
Parece que a opinião da criança acalmou os adultos e em poucos instantes desistiram de chamar os bombeiros e o esquadrão anti-bombas, não restando outra coisa ao morador da quadra 25, lote 6 senão destampar a garrafa. Ainda temeroso, destampou-a como se abrisse um envelope, ou seja, curioso pelo que pudesse haver no seu interior.
A criança menor esperou que saísse uma fumacinha da garrafa e se formasse o gênio ao qual ela faria três pedidos; a mãe olhando por cima do ombro do marido, o incentivava a agir com presteza, acabar com o mistério. A criança de oito anos insistia na mensagem que com certeza havia no interior da garrafa. O morador olhou para dentro da garrafa, viu alguma coisa, olhou novamente, agora colocando a garrafa contra a luz e finalmente disse: parece haver uma mensagem.
Conseguiu retirar um papel enrolado como um charuto e, diante de todos, desenrolou-o lentamente. Leu: “Quando você ler esta mensagem, tudo já terá terminado”. E havia um rabisco como se fosse uma assinatura. Uma brincadeira! Coisa de quem não tem o que fazer! Disse a mulher, e os vizinhos repetiram: Coisa de quem não tem o que fazer!
O morador da quadra 25, lote 6, no entanto não dormiu naquela noite. Já tarde, quando todos dormiam, levantou e foi olhar a garrafa que havia deixado ao pé de um vaso no jardim. Pegou-a, cheirou-a, cheirava a sal e mar, recolocou-a ao pé do vaso. Como ela pode ter vindo parar aqui? Quem escreveu aquele bilhete? O que ele quis dizer?
Voltou até sua escrivaninha, pegou uma folha de papel, um lápis, e escreveu: “Se você ler esta mensagem é porque nada terá terminado.” Enrolou-a como um charuto e colocou-a dentro da garrafa; apertou a rolha para que não pudesse entrar água e deixou-a no mesmo local onde a havia encontrado pela manhã.
À noite sonhou com uma garrafa à deriva.
No outro dia, muito cedo, levantou e foi pegar o jornal. A garrafa já não estava lá.


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18.6.07

Dever cumprido


O Ermo é um caldeirão onde se formam os mormaços que rondam mundo afora. Lá não voam pássaros nem nascem flores. Só répteis e roedores se dissimulam entre pedras e tocas escuras. Não consta em cartas geográficas, mapas ou levantamentos de qualquer espécie. Ninguém até hoje reclamou sua posse e as cercas se desviam daquela depressão descomunal com medo de se perderem e nunca fecharem o círculo.
Tempos atrás apareceram uns homens soturnos, vasculhando aqueles segredos com lunetas, fotografias e vôos adejantes de helicópteros. Tencionavam usar aquela Sibéria às avessas como um depósito de lixo atômico, degredo para inimigos políticos ou isolamento para criminosos irrecuperáveis? Vieram, registraram e nunca mais apareceram.
Pois ali, naquela axila do universo, moram três homens. O pai e dois filhos. Ninguém atina com o hediondo crime que os encurralou naquelas profundezas. Não se imagina o peso de remorso tão insuportável capaz de impor tal mortificação voluntária. Que crime seria capaz de suplantar em castigo o castigo legal? Que loucura tão sem comparação faria alguém enfrentar a natureza onde ela é mais terrível e rancorosa?
Nem crime nem loucura. Quem sabe, fuga ou medo? Estavam ali tentando salvar a própria alma após terem sido empurrados por um exército de cercas e arames farpados que sempre estavam nos seus calcanhares quando acordavam. Quando ali desceram as cercas pararam seu assédio, o censo riscou-os de sua lembrança, os patrões se esfumaçaram. Ali, só a brutalidade muda da natureza, o espesso silêncio das distâncias, a aridez do paraíso de Caim. E na solidão encontrada, o velho encontrou tempo para recensear os pecados e suas formas de expiação. Afinal, quem somos nós, dizia, senão pecadores? Que mais poderia Deus nos oferecer como paga do que temos feito? Os dois filhos nada respondiam.
O velho se aprofundava nos mistérios do apocalipse enquanto os filhos cuidavam da provisão. Quando vinham à cidade assistir à missa do galo, os filhos cuidavam de adquirir sal.
Naquela terra, onde os répteis se alimentavam do próprio rabo, viviam eles, descobrindo quistos de fertilidade microscópica sob pedras, raízes sumarentas sob a crosta seca, umidades insuspeitas em grotões; com os olhos rápidos da precisão localizavam preás sorrateiros sob a cabeleira desgrenhada das macambiras, e água invisível porejando num paredão de caverna.
Um dia o velho virou-se para os dois filhos e disse: - Hoje eu vou morrer. Quero água para lavar os pés e peço para vocês que me façam a última vontade. Quero ser enterrado em cemitério cristão. Depois disso, vocês tomem o destino que acharem mais conveniente. Antes de virar a página do apocalipse a mosca varejeira já rondava aquelas narinas estriadas de varizes.
Do ermo até a casa mais próxima era preciso um dia de penosa viagem vencendo aceros, cortes, descidas, lombadas, serpenteios, socavões, súbitas subidas, abismos e chã batida. Uma idiota topografia fazia o caminho rodopiar sobre si próprio sem se repetir; uma lógica inalcançável traçava aquela superfície de Moebius embriagada.
Providenciado o fornido pau que suportaria a rede para o último translado, os filhos constataram a dificuldade da tarefa que teriam de concluir; o castigo da última vontade do velho pai. Sozinhos não aportariam no cemitério nos prazos que a morte estipulava. Computando o cansaço, o caminho, a sede, a chaga nos ombros e as bolhas sob os pés, não usariam menos de dois dias. Os vermes não lhe dariam prazo tão dilatado. Caminhando à noite exporiam o velho ao faro sutil dos guaxinins, e eles próprios ao bote silencioso da suçuarana. Durante o dia seria penoso romper o nevoeiro espesso das moscas e não se desesperar ante a ronda aérea da esquadrilha de urubus.
Além do mais, o respeito cultivado durante tantos anos talvez não suportasse presenciar o velho desconjuntar-se, efervescente, esvaindo-se num rastro de lodo e pus pelo caminho, servindo de repasto à língua aquosa dos cachorros do mato.
Dois dias e meio depois os filhos concluíram a tarefa exigida. Sem reclamar, lavaram as chagas com cachaça, esperaram os calos se recomporem e rumaram para São Paulo antes da missa de sétimo dia.
Quase dois anos depois, a exigüidade do cemitério e uma escolha casual do coveiro acenderam um debate canônico naquela comunidade de leigos. Ao escolher aquela cova para sobrepor mais um cadáver, o coveiro deu de cara com o velho do Ermo quase intacto. O rosto um pouco mais seco, as órbitas vazias, mas completamente intacto.
Seria o velho um desses santos desapercebidos ante quem a sanha dos vermes se retrai respeitosa? Ou seria um perverso de quem o infalível tapuru guarda distância temerosa? O debate acendeu os ânimos, fendeu a comunidade em dois partidos, e só não deu origem a apostas porque todos sabiam que o veredicto sobre tal causa dificilmente contentaria a parte perdedora. O pêndulo dessa discussão oscilava entre canonização incontestada e a execrável e desabonadora excomunhão quando o coveiro, a quem coubera os últimos cuidados com o morto, cometeu a indiscrição delatora: o defunto que ele enterrara talvez jamais seria comido pelos vermes. Não por santidade ou por demasia de maldades. É que os pobres rapazes, querendo atender à última vontade do pai, haviam salgado e amarrado o velho de tal forma que a podridão demoraria tanto a chegar a ele como demoraria para consumir um fardo de charque.