1.12.08

PRÊMIO LITERÁRIO CIDADE DO RECIFE

RESULTADO DO CONCURSO PRÊMIOS LITERÁRIOS CIDADE DO RECIFE 2008
SECRETARIA DE CULTURACONSELHO MUNICIPAL DE POLITICA CULTURAL

RESULTADO DO CONCURSO PRÊMIOS LITERÁRIOS CIDADE DO RECIFE 2008

A Comissão de Organização dos Concursos Literários e Afins, constituída pela Portaria n°1018/2008, da Secretária de Cultura, publicada no Diário Oficial do Município do dia 08 de abril de 2008, comunica para efeitos legais e a todos os interessados, os vencedores do Concurso Prêmio Literário Cidade do Recife - 2008; no Prêmio Elpídio Câmara Categoria Teatro, obra vencedora "Passos de Ontem" inscrita sob pseudônimo de Dídia de autoria de Luiz Carlos Ladeia, e menção honrosa para a obra: "Presepada - Uma Farsa Nordestina" inscrita sob pseudônimo de Roco, de autoria Rogério Rangel Costa. No Prêmio Jordão Emerenciano Categoria Ensaio, obra vencedora "Maracatu Nação: Festa na Cidade" inscrita sob pseudônimo Paulino Barboza, de autoria de Paola Verri de Santana, e menção honrosa para a obra: "Sonho de Nabucodonosor: Ensaio sobre o Estado Novo em Pernambuco (1937 - 1942)", inscrita sob pseudônimo de Heródoto da Silva, de autoria de José Maria Gomes de Souza Neto. No Prêmio Eugênio Coimbra Junior categoria Poesia, a obra vencedora "Onde a Minha Rolleiflex?" inscrito sob o pseudônimo Almira de autoria de Márcia de Souza Leão Maia e menção honrosa para as obras: "As Plantas Crescem Latindo" inscritos sob pseudônimo Hans Standen, de autoria de Helder Herick Cavalcanti Soares; "Circunavegasons" sob pseudônimo Maracatubeat, de autoria de José Rocha de Albuquerque Filho. No Prêmio Lucilo Varejão categoria Ficção a obra vencedora "Peccata Mundi" inscrito sob pseudônimo de Luiz Nazar, de autoria Geraldo Maciel de Araújo e menção honrosa para as obras: "Fronteiras de Chumbo" inscritos sob pseudônimo Tibério Jordão, de autoria de Admaldo Matos de Assis, "Um detalhe em H" inscrito sob pseudônimo de Martinho, de autoria de Fernando de Mendonça; "Coração de Pedra" inscrito sob pseudônimo de Cristiano Deveras, de autoria de Cristiano Marcos Pires Neto.
Recife, 27 de novembro de 2008

Maria do Céu Cezar
Presidente

25.11.08

UMA HISTÓRIA DO CONTO - PARTE 7


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 7

Guillermo Cabrera Infante

Faulkner, como Fitzgerald, também foi alcoólatra e, como Fitzgerald, também foi a Hollywood e serviu como tarefeiro de ouro (ou dourado), especialmente para o diretor Howard Hawks. Mais esperto ou mais duro de domar, Faulkner ia a Hollywood, mas, assim que recebia seu dinheiro, voltava correndo para Oxford. Não a universidade inglesa, mas o pobre povoado do Mississippi onde ele nasceu e morreu, no mais profundo e racista Sul. Ao contrário de Fitzgerald e Hemingway, Faulkner era um reacionário público e um liberal privado. Dessas tensões são feitos não apenas seus romances mas os muitos contos que ele escreveu.
Alguns de seus romances, como Palmeiras Selvagens, cujo belo título acaba de ser surrupiado e estropiado pelo diretor Oliver Stone, e Desça, Moisés, são feitos de contos mais ou menos longos, entre os quais algumas obras-primas como "O Urso". Outras de suas narrações breves, como "A Rose for Emily" e "Barn Burning", constam de todas as antologias e integraram a seleção feita pelo próprio Faulkner em suas Selected Stories. William Faulkner chegou a publicar um livro de contos detetivescos. Chama-se Knight's Gambit, e seu fio condutor é uma atividade que ninguém associaria ao narrador de "Enquanto Agonizo" e "O Som e a Fúria": o xadrez.

17.11.08

CONTO




O TELEFONEMA


– Alô! É do CRV?
– Aqui é o Centro de Resgate da Vida, vinte e quatro horas no ar para oferecer apoio e divulgar o amor à vida... Qual é o seu problema?
– ... Eu...
– Se for desânimo tecle 1...
– Eu quero me suicidar, mas não escolhi a forma...
– Se for desilusão amorosa, tecle o 2...
– Não, eu quero acabar com minha vida!
– Se for problema financeiro tecle 3...
– ...E quero saber qual a forma menos dolorosa...
– Se for angústia por ter sido traído, tecle 4...
– ... Pode ser veneno?
– Se for separação litigiosa tecle o 5...
– Cianureto... Como adquiro cianureto?
– Se for depressão tecle o 6.
– ... Mas também pode ser tiro... Dói muito?
– Se for brincadeira de quem não tem o que fazer tecle o 7
– ... Ou enforcamento.
– Se tiver dúvida do que realmente você sente tecle o 8...
– Acho que vou pular de um edifício...
– Se quer voltar ao menu principal, tecle o 9... E obrigado. O CRV agradece o seu telefonema, esperando que este seja o último.
– Se realmente você quer morrer, tecle o 0. É o IML... Ou aguarde a telefonista.
– Alô? Maria, telefonista do CRV, às suas ordens!
– Maria? Maria eu quero morrer! Suicídio!
– Em que posso ajudar?
– Quero achar o melhor jeito, o menos doloroso!
– Todos doem muito.
– ...Tiro na cabeça!
– Patético! Quer chamar a atenção. Vai sujar o tapete da casa!
– ... Me jogar de um edifício!
– Espetacular, mas pode ferir alguém na queda, amassar carros e perturbar a ordem pública!
– Enforcamento!
– Você vai ficar roxo! É horrível! E a língua de fora? Você já pensou que vão tirar fotos suas?
– Cianureto... Posso tomar cianureto!
– Dói demais! Depois, não é fácil encontrar. Isso é coisa de nazista! Use coisa mais democrática, pelo menos!
– Também posso me jogar diante de um automóvel...
– Sem saber se o carro tem seguro? E o transtorno que vai causar ao dono do veiculo?
– Sendo assim, como é que eu faço pra morrer?
– Tenha paciência, espere a morte. Ela não falha. E você somente vai encher o saco de sua família por mais algum tempo. Tenha uma boa noite!






(De Os Colecionadores, inédito)

2.11.08

CONTO

Amaro e Dulce



O amor de Dulce e Amaro era exemplar. Tão exemplar que parecia nem existir. Era a atração magnética dos nomes ou a aparente indiferença dos sólidos convívios? Sem procurarem respostas para tais perguntas, afastavam com arte os espinhos da vereda da convivência, aparavam as arestas dos mal entendidos, interceptavam as flechas frias da inveja em pleno vôo, pisavam na cabeça da serpente sibilante da maledicência.
Era assim que viviam Amaro e Dulce.
Desconheciam a extensão pública das carícias, da mesma forma que a submissão costumeira de um se curvando à grosseira autoridade do outro. Eram iguais.
Quando se olharam reconheceram-se porca e parafuso; casulo e crisálida; engrenagens.
Eles não tinham filhos, logo ali onde filho era a única posse que não distinguia ninguém. Mau olhado contra a harmonia ou um instante de amnésia do destino? Isto parece que os aproximava mais, apesar do zumbido sussurrado nas alcovas, dos risos enviesados nas calçadas ou das insinuações flutuantes no ar. Mas quem sabe os segredos da reclusão dos amores de cada qual? Quem sabe as formas, as preferências, a partitura dos gemidos, a postura da lassidão e do repouso, senão quem se deleita em tais intimidades? E quem pode discernir a vontade de Deus ou da natureza no cipoal de coisas e significados que estão por acontecer? Quem pretende agarrar com o saber os infinitos mistérios que correm por esses túneis sinuosos do corpo, onde convivem mistérios, coincidências e probabilidades?
O que é saber viver? Cultivar amor ou camaradagem no deserto da ignorância exige muito. Requer muitas maciezas, trejeitos, renúncia e simulação de cegueira. Então, um não via o disfarçado olhar do outro - inocência ou gula - passear, planando, sobre os contornos das mocinhas de aflorantes peitos e púbis rarefeito?
E o outro não via o mal disfarçado prazer de um ao abarcar com os olhos as protuberâncias incontidas dos rapazinhos de buço ralo e voz dissonante? E não deixavam a névoa embaciante da compreensão envolver essas fraquezas entrevistas?
O que é viver então? Trabalho, compreensão e alegria.
Ordenhar água limpa do úbere seco da natureza, entender que esse emaranhado de sangue, fibras, nervos e calafrios nos faz estranhos a nós mesmos, quanto mais a outros fora de nós! E trabalhar a alegria como uma argamassa, como uma sublime caliça nascida de algum lugar dentro de nós, como um vômito ou um pensamento, para colar os cacos da aridez das coisas, do estranhamento das pessoas e acalmar o redemoinho da existência.
Talvez pensando assim, construíram um lar de calmaria. Suor e sela noite e dia; rebanho e pasto, além de toda a lida decorrente: troca, transporte, abate, ferro e fogo: um. Fogo e arte, alecrim e manjericão nos acepipes; fartura e cheiro sobre a mesa; espermacete sobre o linho, vincos afiados com ternura: o outro.
A força e a destreza de um complementavam o delicado e o sutil do outro. E era assim porque para se viver, um só não pode tudo, há que dividir as lidas, os afazeres, tocando a cada um aquilo mais de acordo com o gosto ou a natureza, a aptidão e o desejo. O comum, o coletivo, fica sendo a alegria, o divertimento, os planos, cama e lençóis.
Os olhos de um seguiam o outro na dança dos currais: boi e brida, pata e laço. Músculos retesos dominando a desordenada brutalidade dos bovinos. Com que sincero gosto o outro elogiava a surpresa permanente da fartura trivial, o festim rotineiro da mesa bem disposta. E nisto a relação de ambos se perpetuava.
Não havia viagem sem presentes no retorno: calçados macios, tecidos finos e de motivos coloridos; perfumes, revistas de moda e decoração. Não havia retorno sem banquete, música e bela mesa. Fartura e guloseimas; forno e fogão.
Nas despedidas, um montado, armadura floreada em couro sobre couro, forte, rijo, domando a irrequieta pressa do alazão com punho firme; cabelo em cachos, batom, espora e brincos: Dulce. O outro do terraço, franzino e colorido, aspergindo adeuses, já impaciente, antevendo os presentes do retorno: Amaro.


(De Aquelas criaturas tão estranhas, Rio Fundo, 1995.)

26.10.08

UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 6


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 6

Guillermo Cabrera Infante


Hemingway e Tarantino
O conto americano do século 20 nada deve a Maupassant, mas sim a Tchecov. Seu renascimento lembra mais Twain do que Poe e começou, como ocorrera com Twain, com uma literatura regional que pulava as fronteiras do Meio-Oeste para chegar a Nova York e daí ao mundo. Seu pioneiro se chamava Sherwood Anderson, patrocinador de William Faulkner e modelo de Ernest Hemingway. Seu livro Winesburg, Ohio (conhecido na América do Sul e em Cuba como Las Novelas de lo Grotesco, embora não sejam romances, e sim contos, e essa história de grotesco seja gratuita, mas não deixa de ser um título com gancho) continha uma nova visão do mundo adolescente num lugarejo de Ohio, e sua linguagem, coisa bem importante, era entre ingênua e sábia.
Faulkner, que graças a Anderson publicou seu primeiro romance, é famoso como romancista, ou melhor, como um poeta falastrão, mas escreveu meia dúzia de contos memoráveis. Hemingway, por sua vez, é mais contista do que romancista: um artista que renovou a prosa moderna americana com seus diálogos sofisticados para conversar com primitivos, que são de uma mestria ainda atual. Seu conto "Os Assassinos", em que apenas com o diálogo se oferece uma amostra do mal sob a forma de uma conversa aparentemente casual, revela uma violência latente que nunca se faz patente.
Desse breve conto partiu a renovação do romance policial com Hammett e Chandler, que escreveram primeiro contos de mentira e de morte. Um filme recente, "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, com seus diálogos recorrentes, intermináveis e perigosos, não teria lugar se antes não tivesse existido "The Killers". Seu título mesmo, direto e brutal, serviu ao cinema desde que este começou a falar: diálogos ditos com o canto da boca, que é como se lêem, sem mexer os lábios, as conversas de Hemingway.
Dos grandes escritores americanos dos anos 20, Scott Fitzgerald é o único que frequentou a universidade, mas nunca chegou a se formar. Todos, portanto, foram autodidatas. Alguns, como John Steinbeck e William Faulkner, exerceram as mais variadas atividades, quase sempre manuais. Ernest Hemingway se dedicou ao jornalismo -que é quase um trabalho manual. O único instrumento que se tem de aprender a utilizar é a máquina de escrever, e Hemingway sempre foi um mau datilógrafo. Todos eles eram contistas respeitáveis, mas, à exceção de Hemingway, o cultivo do romance ocultou essa qualidade.
O exemplo mais evidente é o de Fitzgerald. Todos vocês já leram ou sabem que se deve ler O Grande Gatsby, festejado pela crítica, favorecido pelo cinema em produções coloridas e em preto-e-branco, com Alan Ladd, o perdedor nato, e com Robert Redford, numa versão chocha de Alan Ladd. Alguns conhecem seu conto "O Diamante do Tamanho do Ritz", mas poucos sabem que faz parte de seu livro Contos da Era do Jazz, e ninguém sabe nada de suas coletâneas All the Sad Young Men e Taps at Reveille. Depois de sua morte, foram publicados dois volumes de contos, Afternoon of an Author e The Pat Hobby Stories, uma compilação surpreendentemente leve para um tema dolorosamente autobiográfico: as aventuras e desventuras de um escritor de aluguel em Hollywood, onde o autor morreu.

17.10.08

CONTO


UM ESCRITOR



UM ESCRITOR AMIGO MEU acaba de lançar um livro. É um livro original, tão diferente e revolucionário que ele não sabe como classificá-lo. A síntese perfeita entre o signo e seu oposto, entre a palavra e o silêncio. Um livro revolucionário. No lançamento havia oito pessoas. O namorado do autor, dois amigos ligados às letras profundas e radicais, uma tia idosa que o sustenta, uma irmã, um amigo do namorado, um transeunte e eu. Oito. Ele completava os nove e estava feliz.
Um dos amigos das letras radicais disse algumas palavras, durante uma hora, e eu tive que falar do livro, relembrar algumas passagens da nossa adolescência, quando estudamos juntos, de nossa amizade e afinidades literárias. A tia chorou uns quatro lenços de cambraia, a irmã somente três; o namorado, um pouco afastado, olhava embevecido e tímido para o maior escritor do mundo. São assim os lançamentos. Afinal é a coroação de dias e noites, noites e dias de suor e labuta, de labuta e suor, com pequenos intervalos para uma olhada no espelho e busca de inspiração.
Ele demorou exatos dez anos para construir sua obra. Dez anos. Noites de labuta e canseira. De insônia e labuta. Pelo menos foi o que ele afirmou na hora dos agradecimentos. Dois anos de hipérboles, metáforas, paráfrases e aliterações; não sei quantos mais de reestruturação, reescritura e acréscimos; e o restante de condensação.
Ao fim do segundo ano tinha 510 páginas escritas, 251.620 palavras, 1.647.760 caracteres com espaço, 3920 parágrafos e 22.570 linhas. Um castelo de palavras, produto da primeira fase, a de aglutinação.
Os dois últimos anos ele os gastou polindo, cortando, buscando a essência. Quando fez uma primeira leitura, retirou os erros mais grosseiros, as repetições, por si mesmas desnecessárias, e os parágrafos obscuros, economizou 56 páginas; na segunda leitura, cuidou de retirar o excesso de adjetivos - os manuais falam dos tais adjetivos e de seus malefícios para o estilo -, e lá se foram 32 páginas; com o excesso de quês implicantes e repetitivos cortou 16 páginas. Ao fim dessa primeira passada, estava com 407 páginas e uma ligeira impressão de que seu romance tinha tudo para ser uma grande obra.
Na terceira leitura, notou que ainda havia muita gordura, muita coisa que não contribuía para a solidez da obra e resolveu cortar. Aplicaria algo que leu de um determinado crítico de literatura que dizia: se você notar que retirando um capítulo ou parágrafo ele não faz falta, corte. É porque realmente ele não serve para nada. Começou com os capítulos. Dos trinta e oito, cortou quatorze. Os vinte e quatro restantes, após a poda dos parágrafos mal ajambrados, obscuros, desnecessários ou ilegíveis redundaram em 231 páginas.
Semanas depois, uma leitura sobre Graciliano e sua febre pela concisão, somada com outra sobre a poesia de João Cabral, fez com que devastasse dez capítulos, que refundidos resultaram em oito e 126 páginas. Dessas 126 páginas, retirou todos os personagens, deixando só o principal e com isso seu texto ficou reduzido a 45 páginas. Podando as páginas onde havia algum tipo de ação do personagem, restaram-lhe 19 páginas. Com um texto tão condensado, não havia necessidade de divisão em capítulos, o que economizou três páginas.
Na última leitura, resolveu deixar somente os monólogos interiores que tivessem relação direta com o suicídio – tema do livro -, o que lhe custou sete páginas. Cortou, depois, oito delas por não terem um cunho filosófico mais profundo e se viu frente a frente com meia página altamente condensada, profundamente densa.
Mas, pensando bem, nada seria mais profundo do que o ato do seu personagem. E trocou aquele parágrafo profundo por esta frase banal, mas tão representativa: Ele iria se matar. E tal concisão levou-o à idéia genial: A morte é o absoluto. O que é uma frase para representá-la? E riscou a frase dando origem àquela sua obra de tantos anos. Pelo menos foi o que ele disse na hora dos agradecimentos.
A crítica não tomou conhecimento. Os resenhistas passaram ao largo, e as más línguas acharam outras coisas de que ocupar.
Vendeu oito exemplares no lançamento, embriagou-se e começou a se preparar para escrever o próximo.


Geraldo Maciel



(Do livro de contos inédito Os Colecionadores)

9.10.08

CONTO

O CONCERTISTA E A CONCERTINA

Para Maria Valéria Rezende


O concerto não era um espetáculo, era uma despedida. O cenário era aquela rua longa e deserta, com um vento frio escoando entre as casas, removendo folhas secas e papéis, como se fantasmas varressem aquele anfiteatro onde, afastadas, algumas árvores espreitavam, gatos de pálpebras semicerradas cochilavam nas biqueiras, e o resto do universo - uma grande abóbada azul-escuro embebida de estrelas, invisíveis planetas e difusas nebulosas -, logo acima dos telhados, era testemunha indiferente do que acontecia aqui em baixo.
As casas eram antigas, altas, como se tivessem sido espremidas umas contra as outras por uma força desconhecida. Naquela noite, o relógio quase não andou e o frio da noite fez as pessoas deitarem cedo.
Apesar disso, mesmo sendo quieto o lugar e silenciosas as pessoas, o material de que é feita a vida borbulhava sem parar. Uma moça jovem deitou com o namorado na sala de sua casa enquanto sua mãe cochilava e seu pai olhava as estrelas no quintal; alguns maridos viraram de lado e dormiram, enquanto outros tentaram povoar o mundo como manda a lei; alguém roubou uma galinha depois da meia noite; mais adiante alguém parou de contar histórias de almas e lobisomens; um outro sentiu uma pontada no peito, um seu compadre teve disenteria; há quatro moças menstruadas, seis mulheres grávidas e dois ou três moleques se masturbando em suas redes; alguém faz um chá, um e outro tossem; um dorme sonhando com suas dívidas, outro não dorme pensando no que não recebe; um dorme por ter comido em demasia, muitos se ressentem da barriga vazia; uma acalenta e dá o peito, outro ronca, mas não dorme direito. Um bêbado flutua no sereno e os cachorros incomodam suas pulgas.
E por fim, uma nuvem úmida, perfumada e ondulante, vai se espalhando, ocupando a rua, preenchendo as casas, acariciando os ouvidos, acordando os dormentes, despertando os que cochilam e envolvendo os acordados. A moça jovem que deitou com o namorado sente o segundo tremor pelo seu corpo; sua mãe que cochilava desperta do torpor e seu pai continuou olhando as estrelas, mas agora sem prestar atenção a elas; os maridos que dormiam acordaram, e os que tentavam povoar o mundo, tentaram novamente; alguém abandonou a galinha que roubara depois da meia noite; aquele que contava histórias emudeceu; as pontadas no peito daquele desapareceram, estancou a disenteria de seu compadre; as quatro moças tiveram seu fluxo interrompido e a essa altura as seis mulheres grávidas já somam sete, enquanto os três moleques ainda se masturbam em suas redes; alguém fez e tomou um chá, um e outro pararam de tossir; um acorda e esquece suas dívidas, outro não dorme e esquece os créditos um momento; um dorme por ter comido em demasia, muitos se ressentem da barriga vazia; uma acalenta, dá o peito e ouve, outro para de roncar e escuta. Um bêbado continua flutuando no sereno e os cachorros deixam em paz as suas pulgas.
Era a música. O concerto. O concertista tocava a czarda de Monti que ninguém ali conhecia, a não ser ele, e que uma vez aprendida, em um lugar distante e como se fosse um segredo, dormia nas dobras da sua concertina, no interior do fole, como uma coisa sagrada. No primeiro acorde, o vento que andava célere, deu uma meia volta sobre as casas e retornou mais suave, como se quisesse ouvir a melodia que saía da concertina; o vento frio virou aragem, e a platéia – os homens, os bichos, as pedras, as árvores, os ares, os fantasmas e o infinito -, respirou com calma, dando lugar ao som que preenchia aquela parte da abóbada sobre o mundo.
E aquela imersão maravilhosa que todos sentiam vinha do jorro saído daquela caixa de artifícios, a pequena maleta de sons, uma concertina de oito baixos, de fole prateado, com suas fileiras de botões emparelhados como em uma cartela de comprimidos. Aquela caixa, sonora matéria de sonho e desejo do concertista, era como uma mulher amada. Fora descoberta por ele em uma vitrine de uma loja de ferramentas, recebida por conta de um débito insolvível, e desde então achou canto cativo no coração do enamorado concertista.
Quanto custa? Uma montanha de dias de trabalho, outra montanha de noites sem dormir, afora o ciúme de ser traído e abandonado, desprezado por outro de fortuna, fortuna que ele como artista não ousava possuir. Pecúlio? Nenhum! Que pode ter um artista solteiro, amante de saraus, bebida, certas diversões e nenhum emprego ou bem de família? Uma cama, um colchão de palha, uma mala e mais nada que possa se transformar em moeda sonante, a única música para o dono do armazém e atual dono da bela concertina? Por outro lado, que pode um artista sem o instrumento da sua arte, vivendo ao sabor dos instrumentos que a bondade alheia ou o coleguismo dos outros possa lhe proporcionar? E como sofre um artista com a asma dos foles resfolegantes e remendados que o desleixo de artistas menores não repara; é triste como o choro de um velho o som desafinado de muitos instrumentos que tem tocado, nada é pior que o ruído cavo que se cria quando se preme um botão e do instrumento só sai o bruto ar, o esgar do fole, como se aquela caixinha, delicada como uma criança, estivesse tísica.
E durante meses que duraram anos a pequena concertina ficou exposta aos olhares indiferentes da maioria e aos ávidos olhos do apaixonado concertista que toda semana lhe fazia uma visita. E numa delas, entrou na loja, foi até o balcão onde despachava o comerciante e lhe perguntou: Posso experimentar? Fazer um teste? Podia. Colocou-a no colo, abriu o fole lentamente, ela respirava como uma criança. Premiu os botões brancos, um a um, baixinho, ouvindo a afinação e gozando a sonoridade. Pediu resposta dos baixos, e ouviu aquele ronronar macio, acariciante e puro.
Sabe tocar? Sei. E por que não toca? Jurei só tocar em instrumento meu. E lhe veio a tentação de fazer um solo, uma improvisação de Pedacinho do céu ou de Escadaria, quebrando a jura, mas aquietou-se. Só toco em coisa minha. E quanto custa? E a resposta cavou um abismo entre ele e a concertina e lhe doeu como se fosse a recusa da mão da mulher amada. E é à vista? À vista é. E o concertista voltou para casa com o coração em pedaços e pensando coisa ruim. Comprar a prazo! Ele não vende. Roubar a concertina! Fazer de conta que ela era uma moça, sua noiva, e roubá-la, fugirem juntos como se noivos fossem. Depois, passados os alvoroços, enviaria emissários ao comerciante e proporia um trato, pagamento parcelado, já que com ela ele podia pagar as prestações. Impossível? Muitos casamentos foram feitos assim e ninguém morreu ou foi para a cadeia por isso.
A concertina anoiteceu e não amanheceu. Fugiu com o concertista para lugar incerto e não sabido. O comerciante esbravejou como um pai enganado e fez registro na polícia. Suspeito? Não sei quem foi, mas desconfio de um que vivia namorando minha concertina e não tinha dinheiro para comprar. E à raiva espumosa do comerciante se seguiram as diligências preguiçosas do delegado, e o mundo abriu-se e fechou-se, e nada de a concertina e o concertista aparecerem.
E como se fosse um furto de noiva, de verdade, numa tarde achegou-se manso e cauteloso um emissário ao balcão do comerciante. E embaixador que era, investido das astúcias que essa profissão exige, destilando a maciez da voz e repelindo a brusquidão do gesto, numa convincente dialética tentou mostrar ao comerciante que o que ele achava preto, na verdade, era branco, que o que estava dentro, na verdade estava fora, que o que parecia ser escuro, se bem olhasse, era a claridade; e tanto parlamentou que o interlocutor terminou aceitando uma conversa mais pé-no-chão, bem pé-de-ouvido, e perguntando: o que é que você quer? Sabendo ele que se tratava do desaparecimento, do roubo ou do rapto de sua concertina e que aquilo parecia ser a única maneira de tirar o prejuízo, tão importante quanto salvar a honra de uma filha.
Aceitas as desculpas do ato subversor - tresvario de um artista apaixonado e pobre -, seria retirada a queixa da polícia e estabelecido um trato com o seqüestrador enamorado: teria trinta dias para pagar a concertina, sem que faltasse um tostão sequer; caso o trato não vingasse e a honra do compromisso fosse manchada, ele ficaria preso, junto com a concertina, mas se ousasse tirar dela qualquer som, a bela concertina seria destruída. Poderia haver castigo maior? Não havendo como dizer não, foi selado o pacto e o concertista riu, primeiro, quando pensou na alegria de ter sua concertina para sempre, e chorou, depois, quando pensou no que teria de fazer para transformar esses trinta dias numa eternidade.
O concertista tocou na feira e lá lhe atiraram alguns trocados; tocou na missa e lá lhe deram uma parte da esmola das almas; tocou nos cabarés e as putas lhe mandaram parte da féria embrulhada como se fosse um charuto; tocou um batizado que lhe rendeu nada, quase; e não houve casamentos nestes dias; tocou no enterro de um morto, mas este era seu amigo e a amigo não se cobram certos favores. E mais não tocou porque não havia onde, e contando o pecúlio sentiu um calafrio.
Vendeu, então, a cama, o colchão e os lençóis, vendeu a mala e um par de sapatos; empenhou um escapulário e uma parelha de roupas. E contabilizou metade e mais um tanto daquilo que devia pelo trato. Pensou em vender seu suor, mas não achou quem dele se engraçasse. Quis vender a roupa do corpo, mas seria preso pela lei. Só se vendesse a sua alma, mas aqui ninguém compra almas, muito menos a de artistas como ele, que tem pouco peso e pouquíssimas virtudes. Apelou para o jogo do bicho, mas a sorte surrupiou alguns trocados do seu incompleto patrimônio. E lhe restaram os suores frios, o desespero galopante e um impiedoso calendário a lhe mastigar o tempo que restava.
E porque o calendário engoliu o tempo com voraz apetite, chegou aquele dia, ou melhor, aquela noite, antecedente do fatídico dia em que o concertista cumpriria seu trato e arrebataria de vez a sua concertina. E era por isso que no meio da rua, sentado em um tamborete, com a concertina ao colo, o concertista se preparava para a despedida. Nunca mais tocaria sua concertina e, já que não poderia mais tocá-la, nunca mais tocaria concertina alguma. O dinheiro estava incompleto, numa sacola, aos seus pés. E no seu colo a concertina, de onde saía czardas, a música que aprendera em segredo e que o fazia flutuar.
No início da música os sonhos se recolheram, os roncos silenciaram, as luzes se acenderam, as cortinas se afastaram, as portas de abriram, e homens mulheres e crianças, meio sonâmbulos e sorridentes, caminharam para o meio da rua onde um concerto reunia a concertina e o concertista. Só a luz da casa do comerciante ainda dormia.
Os moradores, como se agissem de forma combinada, depositavam, um a um, suas últimas moedas na sacola do concertista, enquanto a luz da casa do comerciante acorda. O concertista gela e a platéia volta-se para a luz. Alguém pega o saco e conta as moedas. O comerciante abre a porta e sai à rua. Aproxima-se da pequena platéia. Alguém lhe estende a sacola. O comerciante pega a sacola e lentamente conta o dinheiro.
– Falta uma moeda! Diz.
– Estes são os últimos tostões de todos. Nem mais a caixa das almas tem.
O comerciante devolve a sacola. Quer a concertina. Quando o concertista começa a retirar os suspensórios do instrumento, o bêbado levanta, tira uma moeda do bolso, coloca dentro da sacola e lhe diz
– Toque mais uma!
Quando o dia amanhece, o vento frio acaricia o concertista que dorme sob uma marquise, agarrado à sua concertina. Ao seu lado, o bêbado continua flutuando no sereno e os cachorros não deixam em paz as suas pulgas.



(do livro O Concertista e a Concertina - Editora Manufatura, 2005)

FOLHETIM # 5

UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 5


Guillermo Cabrera Infante


Se James Joyce tivesse morrido logo depois de publicar Dublinenses, ainda assim seria considerado um escritor notável e um grande contista. Traduzir é reescrever. Traduzindo Dublinenses, tive a oportunidade de encontrar os "tricks" e tiques de Joyce mas também seus magistrais contos originais e sombrios e sua escritura cômica.
"The Dead" (que traduzi como "El Muerto") é uma obra-prima dolorosa e um dos grandes contos escritos em inglês, quase um romance, por seus personagens inesquecíveis e sua extensão. "The Dead" não é um precursor do Ulisses, e sim uma peça acabada em si mesma, de uma prosa milagrosamente extraordinária. Não se poderia deixar de falar de um dos escritores mais originais do século 20, Franz Kafka, inventor da fábula com moral teológica, ou seja, metafísica. Sua influência se faz sentir em muitos escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer, ou genuinamente gentílicos como Milan Kundera, que o reclama para a literatura tcheca, embora Kafka tenha escrito em alemão e pertença à cultura talmúdica. Felizmente para nós, que não somos nem tchecos nem judeus nem alemães, Kafka pode ser lido com verdadeiro deleite literário.Um epígono de Kafka, judeu como Kafka, apareceu não na Tchecoslováquia, mas na Polônia: Bruno Schulz, contista. Seu "Lojas de Canela" é de uma originalidade delicada: uma visão da vida judia numa cidadezinha da Polônia que oscila entre a magia e um doce realismo. Schulz, não podemos esquecer, foi assassinado por um tenente da SS nazista, castigo tremendo apenas por estar parado numa esquina sem fazer nada. Ao contrário de Kafka, nunca nem sequer sonhou seu final. É que o totalitarismo é sempre inimigo da literatura.

28.9.08

FOLHETIM # 4


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 4


Guillermo Cabrera Infante


Kipling cultivou todas as modalidades do conto, do monólogo à conversa, sendo alguns de seus contos feitos inteiramente de digressões, como queria Sterne, mas também de invenções memoráveis. E muito antes que Conrad ou Somerset Maugham descobrissem o mundo exótico do Oriente. Com a diferença de que, para Kipling, nascido em Bombaim, aquilo era a vida vivida e vívida. A França não teve um Chaucer, mas teve um mestre do conto no século 18, tardio, mas nada lerdo em sua arte da ironia, exercida com uma inteligência incomum. Refiro-me a Voltaire, cuja obra-prima, Cândido, não é um romance, e sim uma fábula com uma moral em cada página. Os franceses tiveram de esperar todo o século 19 para que, afinal, surgisse um dos maiores contistas de todos os tempos, Guy de Maupassant, assombroso autor de sucessivas obras-primas do gênero. Maupassant teve Gustave Flaubert como mestre e Émile Zola como mentor. Mas nenhum dos dois, embora tanto Flaubert como Zola tenham escrito contos memoráveis, conseguiu superar o discípulo nascido para o conto. Sua influência foi enorme em toda parte e teve seguidores (se não verdadeiros plagiários) na Inglaterra, nos EUA e na Rússia.
É na Rússia que Maupassant encontrará um rival extraordinário, Anton Tchecov, que começou contando anedotas e piadas na imprensa e acabou transpondo seus principais contos para o teatro, com uma arte inesperada. Tchecov, que podia reivindicar para si Nicolai Gogol (autor de "O Nariz" e "O Capote", entre outros contos), era um admirador de Tolstói, que escreveu contos como relatórios de guerra e foi contemporâneo de outro mestre cultivador da forma breve, Ivan Turgueniev. Mas a influência maior no autor de "A Dama do Cachorrinho" e "A Cigarra" é, evidentemente, Maupassant. De Tchecov derivam Górki e todos os contistas russos do início do século 20, que pareciam brotar da terra russa - até que chegou Stálin e, com seu cultivo forçado do realismo socialista, transformou a fértil literatura russa num deserto com tratores.
Outro seguidor de Tchecov foi, na Inglaterra, Somerset Maugham, mestre do conto inglês e mundial. Foi, ainda é, um autor com uma popularidade que se estendeu aos palcos e às telas: várias obras-primas do cinema, como "A Carta" (do diretor William Wyler, de 1940), se baseiam em seus contos. Maugham, em seus contos exóticos, foi influenciado pelas narrações dos "mares do sul" de Conrad e, por sua vez, teve influência sobre outros contistas, evidente sobretudo nos contos urbanos de John Cheever e John Updike, típicos produtos da revista "The New Yorker".

25.9.08

PROTOTEXTO # 3




Nome é uma tatuagem sonora colada à pessoa ao nascer. É útil quando a presença não é possível e a ausência não é aceita. Quando é escolhido e registrado, deseja-se que ele distinga um inexpressivo indivíduo dos demais, agregue-lhe uma qualidade que o nomeado deva ter. Há nome longo, curto, seco, úmido, insípido, voluptuoso, comum ou raro. Há, contudo, os preferidos. Aqui, todos, ou quase todos, chamam-se José, quando não sua abreviatura, Zé, ou seu diminutivo, Zezinho, ou o seu contrário, Zezão, mas todos José. Além de uma homenagem ao pai do Cristo, este nome serve para marcar aqueles cujo destino é o mourejar de sol a sol, sem as devidas recompensas de bóia farta e sono reparador.
Como todos se chamam José, José não distingue ninguém, daí surgirem os acrescentamentos: da Guia, de Ribamar, do Patrocínio, e tantos outros assim grifados para aqueles que fazem questão de ancestralidade e raízes; para os demais, há o comum trivial: Zé de Lica, Zé de Faustino, Zé de João de Otilia, e para os ciosos de sua linhagem, temos os Zé de Tereza de Zé de Joaquim, tendo-se sempre à mão e na lembrança que isto quer dizer, na verdade, José filho de Tereza, filha de José, filha de Joaquim, o mesmo valendo para qualquer outra seqüência de nomes que aparecem em pencas pelo mundo afora.
No meio desses zés-ninguém, temos Josés muito famosos, sendo o caso de José Lins do Rego, o de José Américo de Almeida, José Condé, José de Alencar; os Josués, de Castro e Montelo – que tiveram seus nomes atrapalhados por um U intrometido que caiu ali entre o S e o E sem que ninguém tivesse pedido -, Ledo Ivo que sem que se saiba por que não usa o seu José; Jorge Amado, com quem aconteceu a mesma coisa acontecida aos Josués, só que seu caso as palavras eram duas consoantes e não uma vogal; João Cabral, que de tão econômico nas palavras, terminou surrupiando o Zé que ali deveria haver fazendo companhia ao João; Graciliano Ramos, esse parece que tirou o Zé pelo mesmo motivo de João Cabral e mais uma dose de ranzinzice; Gilberto Freire parece que tirou o Zé por puro esnobismo; Castro Alves, esse de nome Antônio chegou a assegurar mais de uma vez que seu nome deveria ser José e não Antônio; com Gonçalves Dias aconteceu a mesma coisa; Já Ariano Suassuna, que não tem Zé no nome, disse e redisse inúmeras vezes que não lhe desgostaria ter um Zé apragatado antes de seu nome atual, já tão famoso. Esses são os bem conhecidos entre tantos de menor nomeada. Até um dos nossos maiores cronistas e o nosso mais conhecido versejador chamam-se José, sendo um Gonzaga Rodrigues, o outro Limeira.
Zé, metade das letras de José, um terço das letras de Joseph e Yussuf, um quarto das letras de Guiseppe. Apesar de maiores, nenhum desses nomes supera o nosso breve Zé. Quem não é José ou Zé, cobre o erro do padre na pia batismal, culpe a ignorância do escrevente do cartório ou veja se não há outro motivo a encobrir tal falta.
Mesmo agora, com o rádio e a televisão, com os informes do mundo e o conhecimento das culturas de outros povos, apesar da invasão de nomes estrangeiros, tudo indica que não jogamos a nossa identidade na lata do lixo: estão aí os Andersons, os Cleivsons, os Gleidsons, de feição e influência bretã; os Ronnie Vons, os Schumachers, dos arianos adeptos; os Michel e os Platinis, nomes franceses; todo nomes estranhos, não nossos, mas que terminam soando familiares quando pronunciados com um José antes, isto sem falar na familiaridade conseguida se ao invés do José for usado o abreviado e sonoro Zé que, querendo ou não os detratores dessa invasão cultural e onomástica, não deixa de soar simpático e ecumênico, se é que tal palavra cabe aqui.

10.9.08

CONTO


O OLHO


Geraldo Maciel

Perdi o olho direito em uma brincadeira com meu gato de estimação. Doeu um pouco, senti que as coisas, apesar de inteiras, me chegavam pela metade, e, afora a dor inicial, quando o globo ocular vazou como uma bexiga perfurada, não tive vontade de matar o gato. Perder o olho não era uma coisa grave.
Depois que a ferida cicatrizou, após a retirada do curativo que evitava contaminação, fui à farmácia e comprei um olho, uma dessas maravilhas da farmacologia moderna.
Em casa, destampei o vidro, suguei o líquido, quase uma pasta, e coloquei as quinze gotas recomendadas na cavidade ocular. Senti uma ardência inicial, já prevista e alertada na bula, e esperei cerca de um minuto sem fechar a pálpebra. Pronto: eu tinha um olho novo, um olho, cinza-esverdeado com raias amarelas.
Por ironia do destino, engano da balconista ou ato falho meu, comprei, sem querer, um olho de gato. Notei depois, ao ler os detalhes impressos na caixa do remédio. Não me incomodei. Estava vendo bem. Dizem que o gato tem uma excelente visão, sendo extremamente apurada sua visão noturna; tem a desvantagem de não permitir uma acurada variação de cores, mas para quem é míope isso não ia fazer muita diferença.
Dizem que os gatos guardam os raios da aurora para exibi-los à noite. Não senti nada de diferente, talvez porque esse novo olho ainda não havia visto uma aurora. Amanhã, quem sabe... Senti, no entanto, que meu campo de visão era mais amplo e que podia perceber qualquer movimento ao meu redor, por menor que fosse.
Ninguém percebeu a mudança. Só o gato que, a princípio, olhou-me meio espantado, eriçou os pelos e exibiu seus dentes afiados como se me desafiasse. Eu também senti um arrepio, mas não cheguei a rosnar para ele. Senti, isso sim, certa ausência de privacidade, um sentimento de perda, coisa que só mais tarde pude confirmar com absoluta certeza.
Entrei no banheiro e demorei mais que o habitual sob o chuveiro. Mesmo depois que me enxuguei com a toalha, senti uma estranha vontade de lamber algumas partes do meu corpo que eu julgava não completamente limpas. Dormi sem ligar a televisão e enrosquei-me com a cabeça apoiada nos braços dispensando o cobertor. Sonhei com gatas e ratos.
No dia seguinte, acordei ainda de madrugada, contra meu costume de acordar mais tarde, e fiquei esperando o sol nascer. Queria ver a aurora. Queria guardar os seus raios amarelos nos olhos, ou no olho, para ver o que aconteceria à noite.
Fui à geladeira, peguei o leite e uns biscoitos e coloquei na vasilha do gato. Estranhamente, tomei alguns goles do leite gelado, coisa que eu detesto ou detestava, e mastiguei alguns biscoitos. O gato, que até aquele momento havia se escondido não sei aonde, chegou à cozinha e, ao me ver com sua vasilha de leite, pulou rosnando raivoso sobre mim e quase me arranca o outro olho. Quando consegui atirá-lo a um canto e sair da cozinha, tinha os braços e o peito arranhado pelo meu bichano de estimação que agora me detestava.
Percebi tudo. Com o olho que eu agora possuía, eu deixei de ser dono e agora era um concorrente. Os gatos são animais absolutamente territoriais e não abrem mão de seu espaço facilmente. Teria que resolver isto rapidamente: agarrei o gato, anestesiei-o com éter, arranquei-lhe os dois olhos.
Quando as órbitas do gato sararam, comprei-lhe dois olhos humanos. Agora, reina a paz aqui em casa. À noite, após tomar meu pires de leite com biscoitos, saio pela janela e vou caçar pelos becos e vielas escuras, guiado pelo faro de mulheres com mêstruo recém-findo, enquanto o gato cochila em casa frente à televisão.

9.9.08

FOLHETIM # 3


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 3

Guillermo Cabrera Infante


Edgar Allan Poe inventou com três contos - "Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério de Marie Roget" e "A Carta Roubada" -, ele sozinho, a literatura policial, que são o conto e o romance de mistério. Todos os cultivadores do gênero recém-criado foram seus epígonos, de Arthur Conan Doyle, criador do insólito Sherlock Holmes, a Dashiell Hammett e Raymond Chandler, romancistas que foram também contistas e, de passagem, renovaram o gênero. Uma epígona (se alguém disse "jóvenas", eu posso muito bem dizer "epígona"), Agatha Christie, disse: "O conto é o domínio natural da literatura de crime e mistério". Muitos contistas, quase todos anglo-saxões, fizeram do conto seu habitat, que era como uma casa mal-assombrada. Todos seguiram o ditame de Poe, que disse que o conto "é uma narração curta em prosa" e definiu o conto breve como uma peça literária que "requer de meia hora a uma hora e meia ou duas de leitura". Eis aí um importante modo de usar, "com cuidado". Mas há - ah! - leitores descuidados. Para estes, a melhor maneira de ler é no avião - e um best-seller ou livro que se compra porque se vende.
Os herdeiros de Mark Twain são tão numerosos quanto os seguidores de Poe, mas os primeiros, que chamaremos aqui humoristas, atentaram apenas para o lado luminoso da lua de Twain -sem enxergar suas regiões de sombra e de penumbra. O mais bem-sucedido deles foi Damon Runyon, com suas historietas em que o submundo de Nova York aparecia povoado de gângsteres sentimentais, jogadores sementais e uma porção de mulheres de moralidade duvidosa e um (pouco) siso legível como sexo. O cinema e o teatro, onde ninguém lê, criaram um Runyon ilustrado para iletrados. Runyon, que fazia rir, ia ao banco sempre rindo.
Não foram só os contistas com humor que tiveram sucesso popular. A partir do século 19, houve também quem cultivasse - e fosse popular por algum tempo - essa estranha e elusiva planta chamada "conto fantástico". Na Inglaterra, onde se desperdiçara a tradição realista iniciada por Chaucer, houve muitos autores de fantasias cujo objetivo não era induzir o sonho, e sim o pesadelo. Lembro, entre outros, Arthur Machen, Saki e Roald Dahl.
Na Irlanda, terra de luzidas lendas nada lúcidas, Sheridan le Fanu foi um contista de mistério e terror cuja coleção In a Glass Darkly (em Dublin, cidade alcoólica, tomam o espelho, "glass", como copo, e o livro se chama "Em um Copo Escuro") é um dos clássicos do conto de terror como horror. Sua contrapartida foi mais tarde o norte-americano H.P. Lovecraft, um precursor da ficção científica, gênero praticamente inventado por H.G. Wells na Inglaterra. A ficção científica encontrou no conto sua forma perfeita para uma arte imperfeita. Vale registrar que todos os mestres do conto de horror anglo-saxão têm, também eles, em Poe seu antecessor primordial.
É preciso abrir aqui um parágrafo para Rudyard Kipling, talvez o maior contista inglês de todos os tempos. Kipling não fica nada a dever a Poe ou a Mark Twain, e é para a Inglaterra o que Maupassant foi para a França e Tchecov para a Rússia: um contista natural. Começou publicando em jornais indianos e, quando afinal foi a Londres, então o centro do universo literário, tinha apenas 20 anos (Kipling é quase nosso contemporâneo, morreu em 1936). Deixara para trás a Índia, embora fosse justamente seu lado muçulmano, mais do que o hindu, o que mais lhe interessava no subcontinente.


2.9.08

FOLHETIM # 3


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 2

Guillermo Cabrera Infante


Os árabes, entre o harém e a areia
As Mil e Uma Noites é a mais monumental compilação de contos do final da Idade Média. Esses contos são a mais traduzida (e conhecida) literatura árabe depois do Corão. Suas histórias ("Ali Babá e os 40 Ladrões", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e "Simbá, o Marujo") são hoje tão populares como quando foram traduzidas aos diversos idiomas europeus. Sua influência é perceptível desde Boccaccio e Chaucer. Mas, já antes deles, um extraordinário escritor espanhol, o infante d. Juan Manuel, incluiu em seu "Libro de los Enxiemplos" mais de um conto árabe extraído de "As Mil e Uma Noites", então reconvertidas em tradição oral.
Ao contrário do que acontece com os contos contemporâneos na Europa, As Mil e Uma Noites têm mil e um autores, e a esperta princesa Sherazade é um autor coletivo que conta com voz de mulher. São, em todo caso, contos de encanto, e até seu título em árabe é encantador, encantatório: "Alf Layla wa Layla". Dessa vasta coleção de contos rastreou-se a origem até o século 9º d.C. Sua última forma é do século 16. Isso quer dizer que, com seu feitiço oriental, o livro cobre quase toda a Idade Média cristã - embora diga, no início de cada conto: "... mas Allah é mais poderoso". Em seguida vem uma espécie desconhecida de poesia que as infiéis e cruentas traduções não conseguiram aniquilar. Sherazade é a mais poderosa máquina de matar o tédio e a crueldade do rei que sempre assassinava a consorte de cada noite, à exceção da contista, uma mulher amena, apesar de ameaçada.
Chaucer repetiu o esquema em seus Contos de Canterbury, mas em verso. Quem o conseguiu em prosa foi Boccaccio, em seu imitado, inimitável Decameron. É curioso que Cervantes, um artista supremo, tenha buscado inspiração nos contos italianos e não nos exemplos do infante d. Juan Manuel, que, diga-se de passagem, deu a Shakespeare seu "Relato de Mancebo que Casó con Mujer Brava". Acontece que Boccaccio é um contista natural, tal como a contadora de histórias árabe. Cervantes, que inaugurou o romance moderno, o mais imitado, chamou o Quixote de livro e de "novelas exemplares" seus contos, declarando que "de modo algum poderás fazer", leitor, "mistifório". Mas revelou seu ofício e arte: "Meu intento foi armar (...) uma mesa de carambolas". E acrescentou: "Onde cada qual encontre com o que se entreter".
Um escritor cairota, Naguib Mahfuz, em suas Noites das Mil e Uma Noites, que o editor cataloga como romance (os editores são capazes de chamar de romance a lista telefônica, que pode não ter narração, mas tem uma porção de personagens), esse escritor consciente, demasiado consciente, tenta se tornar uma Sherazade assídua. Mas fracassa em seu intento. O livro quer ser árabe e é apenas egípcio.
Por outro lado, Los Cuentos Negros de Cuba são minhas mil e uma noites negras, contadas por uma Sherazade branca, Lydia Cabrera, para entreter as noites em claro de uma amiga agonizante. No final do livro, a doente já estava morta, mas os contos vivem na imortalidade da literatura. Eu os classifiquei, qualifiquei, como "antropoesia".
A trama tecida noite após noite por Sherazade, Penélope contista com milhares de pretendentes, levou muitos escritores - desde d. Juan Manuel, Boccaccio e Chaucer - a tentar uma imitação em que diversos talentos buscam emular o encantamento árabe. Poucos o conseguiram, mas um escritor nosso contemporâneo, Manuel Puig, em seu O Beijo da Mulher Aranha, é uma Sherazade argentina que a cada noite conta um filme inventado para seu companheiro de cela, seu vizir cruel: completamente surdo às dádivas orais que lhe oferece Puigrazade - assim como é cego a suas investidas sexuais.

27.8.08

CONTO



A doce rapadura da vingança




Quem pensaria que numa tarde como aquela, sem graça e sem mistério, com a luz do sol filtrada por nuvens no poente e alguns cachorros passeando na pracinha, iria acontecer o encontro de Aprígio Justo e Antunino?
Não era pra acontecer, porque nenhum dos dois fez por onde o fato ali desembocasse, mas aconteceu durante algumas horas em que um desejou lamber um sorvete de morango, e o outro não achou quem lhe comprasse um remédio na farmácia. Também porque, devido aos quinze anos em que tal fato vinha sendo construído, muitos até esperavam que este encontro jamais acontecesse ou, se tivesse de acontecer, decerto não seria assim tão improvisado pela surpresa.
Remontando-se o acontecido e o que fizeram os dois naquelas bobas horas, ver-se-ia o destino mexendo seus pauzinhos, a fatalidade calculando seus desígnios; alguns riscos sobre um mapa mostrariam as paralelas rancorosas que traçaram com seus rastros durante quinze anos, naquela tarde convergindo na pracinha devido a um cochilo da improbabilidade. E o pior deste capricho: nenhum viu o outro até que estivessem frente a frente.
Antes que se vissem, já os moleques se embrenharam pelos becos, e as portas e janelas foram se fechando. Como polícia não havia, o medo paralisava quem assistia pelas frestas, pois o desfecho era inevitável e não poderia ser interrompido: o assunto era terrivelmente particular.
O silêncio desses minutos arrastados que antecedem as tragédias existe mesmo, e é ele quem espalha a má notícia. E assim, em pouco tempo, se formou uma assistência, retraída nos anteparos das esquinas, dissimulada nos desvãos, nos balaústres, expectando ferro e pólvora.
Aprígio tinha suas cicatrizes morais e uma cicatriz medonha, real, de bordas salientes, que sangrava quando as lembranças vinham fortes, quase uma menstruação que lhe renovava o fértil útero da vingança. A cicatriz era um O quase perfeito, considerando-se as poucas letras do escritor, um terceiro olho afixado em sua testa pelo punhal rombudo de Antunino.
Antunino também tinha a sua, uma cruz não menos grotesca, mal escrita, profunda, roxa e torta, que ele carregava rancoroso e envergonhado.
Cada um guardava ódio ao outro na proporção da humilhação que imaginavam ter sofrido. O que Aprígio carregava tinha-lhe sido imposto numa briga de bêbados, onde Antunino, por pura bazófia e por medo de matar gratuitamente, lhe assinalara como um boi de pasto. Vã glória que lhe custou anos e anos de vida sobressaltada e fuga da vingança.
Anos depois, num descuido de retaguarda, num cochilo da vigilância, Antunino recebeu a marca daquela cruz, anestesiado pelo medo, ao se ver subjugado pelo ódio de Aprígio. Naquele momento, pensou que a morte era coisa de minutos. Não foi. Após caligrafar a sua marca na testa de Antunino, Aprígio lhe falou já quase calmo:
- Você tem seis anos, três meses e doze dias de vida. É o tempo que eu passei com sua marca. Você vai passar o mesmo tempo com a minha. Nesse tempo, você pode passar na minha porta, pedir água na minha casa, até me provocar que eu não vou levantar minha mão para você. Depois disso, eu vou caçar você. Vou sangrar você como faço com os porcos. Não esqueça: seis anos, três meses e doze dias!
Passado esse tempo, começou o martírio dos dois. Aprígio, que era açougueiro de porcos e cabritos, já não pôde oferecer carne de porta em porta, nem fazer, sem sustos, a entrega habitual de seus fregueses. Antunino, que comerciava com tecidos e miudezas, não podia expor suas mercadorias pelas feiras da região, pois no meio de tanta gente, como poderia perceber a aproximação do inimigo? Andar pela cidade era um exercício de sobressaltos, cautelas e excitação. Para se deslocarem com segurança, tinham desenvolvido o faro dos cachorros, a audição das lebres e o tato dos deficientes visuais.
Dormir, mesmo dentro de casa, com portas e janelas aferrolhadas duplamente, era sempre um sobressalto: coisa de meio sono, de sono inteiro com um olho só. Os dois se sentiam caçados, cada um sendo caçador. Quando se caminha em círculo, quem vai à frente e quem vai atrás?
Gastaram anos no estudo dos movimentos um do outro, de tal forma que cada um deles sabia mais do outro do que de si próprio. E tinham espias. Gente que dava notícias do trajeto e descaminhos de cada um, numa batalha de espionagem e contra-espionagem que, de tão perfeita, se anulava. Os dois faziam sua guerra fria particular, terrível e cheia de tensões, como se cada um carregasse no bolso da algibeira uma ogiva nuclear.
Apesar das tentativas de conciliação, dos terceiros que tentavam evitar a hecatombe, o ódio parecia recrudescer. De pouco adiantaram os embaixadores, os conciliábulos, as mesas-redondas. Os dois grandes lá não compareciam, e tudo continuava como antes.
Os serviços de inteligência de ambos funcionavam a pleno vapor. Não estancavam os relatórios:
- Ele comprou uma mauser nova!
- Ontem trocou o trinta e dois antigo por um trinta e oito quase novo!
- Treinou pontaria com muitos tiros no quintal da casa!
- Viajante lhe trouxe um punhal de aço inoxidável!
Até agentes infiltrados possuíam. Quinta coluna, agente duplo. Gente que queria ver o circo pegar fogo.
Quando os familiares reclamavam da exacerbação do conflito, da necessidade de paz, dos prejuízos econômicos que aquela guerra provocava, eles respondiam com uma retórica estratégica que, traduzida nas devidas proporções, significava exatamente coisas como: poder de retaliação, ataque preventivo, a paz na guerra, equilíbrio de forças, e vocabulário semelhante.
Isto tudo continuou até aquele dia, quando, sem querer, encontraram-se frente a frente, ali, na praça. Seria a hecatombe? Qual dos dois sucumbiria? Pelo arsenal de ódio acumulado durante tanto tempo, era de se esperar a morte dos dois, e dias de lamúrias e orações a leste e a oeste.
Quando viu o inimigo frente a frente, Antunino quis gritar alguma ofensa, mas as palavras quiseram sair todas de uma vez e atravancaram-se antes de chegarem à boca, e ele só conseguiu emitir grunhidos e bufos enquanto seu rosto adquiria aquela cor cerosa, âmbar, própria das horas decisivas e terríveis. Aprígio também não conseguiu articular seu grito primal, vomitar os sons da guerra: maquiou o rosto com a mesma cor usada por Antunino e teve um acesso de tosse intenso, porém breve.
Sacaram as armas quase ao mesmo tempo: a mauser niquelada e pálida mirou seu olho frio sobre Antunino, enquanto o trinta e oito, bojudo, grávido de seis filhotes, enquadrava Aprígio na ponta de sua mira empertigada. Agora era só chegar a ordem, a descarga elétrica no tendão do indicador, e a chuva de ogivas daria um ponto final àquela história.
Mas a logística desses exércitos individuais também tem suas falhas. Confundem-se as ordens, desencaminham-se as providências, atrapalham-se as iniciativas, entrechocam-se os bedéis da retaguarda. Pane? Duros ficaram os dois, a platéia sequer respirou. Num, rompeu-se algum fino duto na altura da cabeça? No outro, um destrambelho qualquer no miocárdio?
Miram-se minutos. Longos e agoniados minutos. Tempo de rever o passado em coisa de segundos; sentir, hipnotizado, a moenda da memória vomitar cada coisinha guardada, esgotar a cacimba de ódios, trazer de volta para uma última conferência o quarto de despejo da lembrança.
Sem que ninguém entendesse, as armas inclinaram-se para o chão, e os dois, como se tivessem combinado algo sem dizer palavras, dão-se as costas e saem da arena da pracinha.
Cada um voltou pro seu território, já no caminho refazendo as estratégias, a usina de ódio retomando a sua incessante fabricação de espuma e bílis, cada um organizando o tempo que teria ainda para se dedicar a lamber a doce rapadura da vingança.


Geraldo Maciel

23.8.08

FOLHETIM # 2


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 1

Guillermo Cabrera Infante

O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez até mais, pois podem muito bem ter existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos, que são a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, melhor; três grunhidos já são uma frase. Assim nasceu a onomatopéia e com ela a epopéia. Mas antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso não é um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção.
Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na memória coletiva.
Séculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo branco e o converteu em mito ao chamá-lo unicórnio. Embora a experiência fosse alheia, tomou e fez seu o tema do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde, outro contista enfeitou com metáforas (isto é, embelezou poeticamente) esse animal único com seu único chifre. Passados outros tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever (e, é claro, a ler), e outros animais e outros homens que se transformavam em animais povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era essa transcendência chamada religião.
Em outro século, quando outros homens já não acreditavam nessa religião de deuses tão humanos que se confundiam com os simples mortais, um deles, um poeta chamado Ovídio, escreveu As Metamorfoses. De religião, esses textos não tinham mais do que aqueles primeiros contos contados em volta de uma fogueira numa caverna. Isso fez do conto o gênero literário mais antigo e mais protéico.
Protéico, como se sabe, vem de Proteus, deus grego que estréia na cena olímpica com a "Odisséia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de tudo, mas mudava de forma para não ser interrogado. Isto é, fazia o contrário de um autor atual, que nunca muda de forma, mas procura sempre ser interrogado: pela imprensa, pelo rádio e pela televisão - e, às vezes, pela polícia. Creio desnecessário frisar que Proteus era uma metamorfose feita deus. Proteus está muito perto de prosa, que é o que os contistas cultivam. Protéico, prosaico - dá na mesma.
Os gregos, além de Homero e sua Odisséia, cultivavam o conto, e um romancezinho, que é o que é Dafne e Cloé, publicado no segundo ano da nossa era, foi seu provável precursor.
Mas são contos os fragmentos que fazem do Satyricon, de Petrônio, um romance, e um de seus mais memoráveis é aquele intitulado "A Viúva de Éfeso", um conto perfeito e muitas vezes citado, copiado até. Entre outros por Jean Cocteau, poeta tão teatral que transformou o conto em peça, ganhando-o para o teatro. O conto, logo protéico, parece desaparecer na Idade Média, mas na verdade se veste com os versos do romance, seja nos "romans courtois", onde aparece como história de aventuras, seja no "Roman de Renart", em que serve a um fabulário, não longe do zoológico de Esopo. Na saga arturiana (que não se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas), o romance adquire um tom mágico, quase místico, que lhe é exclusivo. Mas a história paralela do amor fatal de Tristão pela bela Isolda é, como quer Bédier, um conto de amor, de loucura e de morte cuja aura mágica não fica nada a dever aos modelos gregos e romanos. Mas o conto, sempre recomeçado, reaparece onde menos esperariam os trovadores medievais: no Oriente.
Caricatura de David Levine (New York Review of Books)

17.8.08

PARÁGRAFO # 2


Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariamcomela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.


VIDAS SECAS - GRACILIANO RAMOS. 89a. edição. Editora Rrecord - 2003.
Desenho: Aldemir Martins

13.8.08

EM BREVE! FOLHETIM:


UMA HISTÓRIA DO CONTO

POR GULHERMO CABRERA INFANTE

(EM CAPÍTULOS)

PROTOTEXTO # 2


HERANÇA

Ainda não és. Nadas neste lago transparente e espesso boiando como uma cortiça tonta, um pequeno bólido nunca lançado a lugar nenhum. E esperas. Esperas o clarão de luz, o ar que te provocará ardências desconhecidas, e quando saíres levarás o primeiro tapa que te carimbará na pele a violência que te acompanhará em cada esquina. Ouvirás meu choro e minha alegria, sentirás o quão morna são as minhas lágrimas e quão macia pode ser a minha áspera pele. Talvez o mundo te pareça muito estranho, mas saibas que ele te será tão mais estranho quanto mais tempo vivas, e que com ele e as coisas jamais farás as pazes por completo.
Se fores homem, a arrogância te habitará como um flagelo, a estupidez te será uma companheira inseparável e a ignorância te vendará os olhos. O suor te amargará os lábios, e o cansaço habitará as tuas juntas até a morte. A alegria te será servida a conta-gotas e herdarás tão pouca fé que te sentirás só mundo, apesar dos ruídos à tua volta. Amargarás a ausência da doçura que repeles e chorarás escondido como purgação dos pecados que não cometestes.
Se fores mulher, ai de ti se fores mulher! Sofrerás sorrindo como se isso fosse remissão, e as dores repartirão contigo o frio do leito. A ti não será dado o direito de ser protegida, mas a obrigação de ser o escudo do mundo. Serás uma usina de transmutação. Em ti, a amargura mudar-se-á em compaixão, a desesperança levará à fé e não ao desespero, a chama de tua esperança, mesmo trêmula, terá a obrigação de iluminar a noite das sendas do futuro.
Mas sei que serás mulher.
E sendo assim, deixo-te um alqueire de rugas, mapa antigo, nenhuma bússola que te guie, e uma dorna de lágrimas tintas que te umedecerá a boca; mãos rudes e dores pelo corpo, pequenas alegrias e rezas esquecidas. Também o ninho onde germinará o fruto a quem deixarás a mesma coisa que te deixo. Deixo-te a chave de nenhuma porta, a certeza de minha ignorância e uma interminável esperança que deves guardar como a um segredo.


Geraldo Maciel

10.8.08

DECÁLOGO DO CONTISTA


Horácio Quiroga


1 - Crê em um mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchecov - como em Deus.2 - Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes alcançá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem ao menos perceber.3 - Resiste o quando puderes à imitação, mas imite se a demanda for demasiado forte. Mais que nenhuma outra coisa, o desenvolvimento da personalidade requer muita paciência.4 - Tem fé cega não em tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como à tua namorada, de todo o coração.5 - Não comeces a escrever sem saber desde a primeira linha aonde queres chegar. Em um conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.6 - Se quiseres expressar com exatidão esta circunstância: "Desde o rio soprava o vento frio", não há na língua humana mais palavras que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de tuas palavras, não te preocupes em observar se apresentam consonância ou dissonância entre si. 7 - Não adjetives sem necessidade. Inúteis serão quantos apêndices coloridos aderires a um substantivo fraco. Se encontrares o perfeito, somente ele terá uma cor incomparável. Mas é preciso encontrá-lo.8 - Pega teus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçastes para eles. Não te distraias vendo o que a eles não importa ver. Não abuses do leitor. Um conto é um romance do qual se retirou as aparas. Tenha isso como uma verdade absoluta, ainda que não o seja.9 - Não escrevas sob domínio da emoção. Deixe-a morrer e evoque-a em seguida. Se fores então capaz de revivê-la tal qual a sentiu, terás alcançado na arte a metade do caminho.10 - Não penses em teus amigos ao escrever, nem na impressão que causará tua história. Escreva como se teu relato não interessasse a mais ninguém senão ao pequeno mundo de teus personagens, dos quais poderias ter sido um. Não há outro modo de dar vida ao conto.

4.8.08

CONTO


Um salto para bem longe


Para João Batista de Brito

Havia o bode alpinista e o menino, seu coajudante. O menino, flutuando no mundo, sonhava com papagaios coloridos e pirulitos rasga-bocas. O bode, com uma inquieta alegria nas patas, exibia um enorme par de testículos sobressalentes. De comum, ambos tinham a inocência e uma submersa tristeza nos olhos.
O palco era o Fênix, um circo de panos apodrecidos, carcaça de glória do Fênix de mastros eretos e bandeirolas coloridas. Isto podia ser visto pelos restos do antigo pássaro que ornava o frontão de entrada, onde ainda se podia distinguir o contorno da majestosa envergadura e um ou outro desbotado tom do antigo colorido sob descuidadas demãos de reparo que mais os escondiam que os realçavam. Um palimpsesto da antiga condição.
Na verdade, o Fênix era um circo muito mais por necessidade e brio do que pela tortuosa espinha do mastro, a frágil paliçada de estacas ou a pele rota dos panos, esgarçada e transparente, já nem um biombo separando aquela arte e a vida lá fora. O picadeiro era uma redoma circular de pouco raio, e o palco um retângulo sem consistência de medidas.
Perambulava por povoados cada vez menores após haver se desgarrado da órbita de cidades maiores e ser colhido pela força irresistível da pobreza do interior, das pequenas cidades, vilas e povoados como aquele onde agora estava.
O bode e o menino, adolescentes, quase crianças, não trabalhavam na armação. Os adultos cavavam os buracos, esticavam os arames, estendiam os poucos panos.
O repertório do espetáculo era mínimo. Ia diminuindo com o tempo, por morte do artista titular, desistência de um ou outro ou contenção de despesa. O que sobrava era um pequeno número de entretenimentos que, de tão repetidos, já não tinham brilho, viço ou novidade.
O elenco era reduzido. Havia o bode e o menino. Havia Hércules, de quem a idade e a vida nas barracas chuparam os recheios musculares. Sua força se reduzira, e rasgar pratos de alumínio exigia agora um pequeno talho invisível na borda dos pratos de folhas mais delgadas, para o que contava com o desleixo ganancioso dos fabricantes. Hércules fazia ainda as vezes de porteiro e ajudante de picadeiro, e sua mulher, recém chegada àquele mundo, ajudava na bilheteria. Nos espetáculos, ela tentava ajudar na coreografia dos números de canto e dança. O macaco, senil, já não trabalhava. Limitava-se a catar pulgas e cochilar ao pé do mastro, o que não deixava de ser uma atração.
Havia Bengalinha, o palhaço, já velho, cansado da itinerância, dos palcos quase sempre vazios, de ter que ceder seu espaço para cantores lamurientos e sucessos de gosto duvidoso. A chama de palhaço e o carisma humorístico quase não existiam mais, só aparecendo vez ou outra, deixando sempre nele a impressão de que aquela fora a última vez, o último espetáculo. Mas ele sempre continuava. Com chuva ou noite estrelada, repetia os números, as piadas, já nem ouvindo a reação do público. Reagia como um funcionário público.
A cantora gorducha, com sua voz engordurada e seu sinal na coxa, deliciava o público masculino. Fazia sucesso, fosse qualquer o número que cantasse, estivesse rouca ou fora do compasso. Seu sucesso dependia mais das insinuações e da generosidade da abertura da saia do que de sua atuação cantante.
Os trapezistas tinham nome, renome até, segundo diziam. Já haviam voado sob os toldos coloridos do Grande Circo de Moscou, do Ringling Circo e do Gran Circo d’Itália. Apesar do estado atual de ambos, ainda ostentavam o nome de irmãos Taviani, um resquício da antiga glória, ainda conservado pela necessidade da aura que os nomes estrangeiros dão aos artistas. Era o elenco.
Após vários meses nas outras praças, quase sem conseguir atrair nenhum espectador, o circo Fênix conseguiu chegar ali no socavão da serra, até pouco tempo nem tendo estrada carroçável, e aonde nunca tinha ido um circo.
Na tarde da estréia, após ter baixado a poeira da novidade e terminado o trabalho de armação, o bode viu sair Bengalinha com seu séqüito de moleques anunciando o espetáculo maravilhoso. E quando o palhaço anunciou, à poeira e ao cochilo daqueles moradores, o espetáculo fantástico, alguma coisa de anormal aconteceu. Nuvens acumularam-se a leste, e do sudeste correu uma brisa fresca como há tempos não se via. Pessoas lavaram os rostos nas gamelas, e as crianças inquietaram-se como se fosse tempo de ir para a escola. À noite, quase houve tumulto em frente à boquinha de meia-lua da bilheteria. O circo lotou.
Queriam ver os trapezistas bêbados, os afilhados do vácuo, os inimigos da gravidade? Ou queriam ver somente o bailado no ar, o contorcer quase gracioso da cantora gorducha, coisas que as mulheres do lugar não sabiam fazer e nem os cipós da capoeira conseguiam imitar? As crianças, com certeza, esperavam por Bengalinha e seus cansados números, para elas ainda novidade.
As pessoas, por ouvir dizer, sabiam das maravilhas que no circo se faziam e queriam ver aqueles prodígios que a propaganda retumbante do megafone de lata anunciou pelas três ruas do povoado: o nunca visto salto triplo, mortal, sem rede, com os artistas de olhos vendados.
As maravilhas que a propaganda opera nos negócios! Ninguém imaginou ser impossível voar sem venda e sem rede, num salto triplo mortal, principalmente sendo os dois os irmãos Taviani. Afinal, aqueles dois trapezistas, mesmo um tanto debilitados e maduros, eram ainda os maiores. Tanto que há vinte anos se ouvia falar neles e, ali no socavão, foram embalsamados pela fama. E agora eles estavam ali! Por este motivo, o Fênix conseguiu lotar o semicírculo das arquibancadas e a dúzia de cadeiras à frente do picadeiro.
O elenco tomou um susto com platéia tão numerosa. Nestes tempos duros, a renda dos espetáculos mal dava para alimentar o elenco com uma refeição diária, e o translado de uma praça a outra era muitas vezes objeto da benevolência alheia, despertada pelos dotes físicos da cantora ou pelo medo de que o circo tirasse de circulação o pouco dinheiro que ainda girasse no local. Uma platéia abarrotada nesse tempo era coisa rara. Bengalinha voltou a sentir os calafrios das estréias.
Um Taviani, o mor trapezista, sentado a um canto, chamou o menino:
- Você foi ao mato dar comida ao bode? Ele tem de encher a barriga senão fica nervoso e não consegue fazer nada. E veja só como está a platéia hoje!
O menino já havia feito sua tarefa. O bode, a um canto, ruminava. Sua barbicha professoral tremia: mastigava o hábito. Os dois não tinham segredos.
- Será que nos outros dias também vai dar gente? Era a pergunta do menino.
- Vai. A praça é boa. Gente simples, sem diversão. Praça pra uma semana.
A resposta parecia pedir uma confirmação. O menino e o bode sentiam alguma coisa, um pressentimento, parente da premonição. Era algo mais que a emoção da estréia, mais que a novidade do circo lotado, coisa além do nervosismo do primeiro espetáculo, algo pesado e desconhecido, medo sem fundamento, surpresa que ainda não deu o bote.
O público murmura, coletivo, quando o pano abre e o mestre de cerimônias inicia a função: “Senhoras e senhores, distinto público, o Grã Circo Fênix tem a honra de apresentar...”, e inicia-se o espetáculo. O toldo da cobertura era o céu estrelado onde a Ursa Maior passeava sem pressa. E vem o malabarista, o equilibrista, o palhaço, o bode e seu domador, a cantora, todos recebidos pelos aplausos ardorosos da platéia. Por fim, anunciam os trapezistas. O público os recebe em silêncio, como se fossem monstros sagrados ou dois condenados à execução.
Os números se sucedem até que os Taviani sobem ao trapézio e começam a fazer algumas manobras. Esquentam os músculos e domam o medo, que é parceiro e padrinho de todos os trapezistas.
Não rufam os tambores. Rangem as juntas das cadeiras do palco, estalam as tábuas da arquibancada. Iniciam-se as manobras: vôos no vácuo, mãos e pulsos, garras suadas segurando a probabilidade com a força dos náufragos. Os Taviani estão perfeitos. Felizes. As palmas lhes dão de volta a glória que pensavam estar aposentada, a lembrança dos toldos coloridos sobre a cabeça, a vontade de ousar, como só ousam os jovens artistas.
O público delira e pede mais. Os irmãos Taviani excedem as possibilidades de um trapézio tão curto, de um espaço tão pequeno, de uma impulsão limitada. A ausência de rede não permite mais que aquilo. O público não sabe o que é rede, nem conhece o medo dos artistas: pede o salto mortal. Por trás dos panos, os outros artistas gelam.
Os Taviani parados, em pé sobre as plataformas, olham-se como gladiadores irmãos. Abaixo deles, as coisas são tão pequenininhas! Só chegam os gritos, as palmas. Não vêem os olhos esbugalhados e ansiosos, os acenos desesperados de Bengalinha que lhes grita:
- Não! Sem rede, não!
Quem ouve Bengalinha? Sua voz já é fraca e sem convicção, e aqueles outros são bem mais numerosos e gritam, aplaudem como há tempos não ouvia um Taviani.
Eles sabem que numa qualquer noite, nessa noite, a corda pode se romper, e um deles irá flutuar numa bolha de medo e morrer? Sabem que todo vôo é como se fosse o último vôo? Que, se dali se desgarrarem, serão ejetados em direção às estrelas, onde não há público, e todo espaço é um trapézio de onde nunca se cai porque tudo nele é uma queda sem fim? Ou tudo é bem mais simples, é somente o sangue em corredeiras, o suor nas mãos geladas, o medo e a coragem abraçados, só? É por isso que rezam antes do salto?
Resguardados em um canto, o menino e o bode ouvem os urros da platéia e olham para o céu. Acompanham fiapinhos de nuvens deslizando no azul escuro enquanto estrelas juntam-se à tristeza no fundo de seus olhos. E ouvem os gritos do elenco tentando impedir o salto dos irmãos. O menino agarra-se ao bode compreendendo que aquilo era grande e perigoso. Os adultos haviam enlouquecido ou se embriagado. Tinha medo de ficar sozinho, perdido naquela barraca armada no meio do mundo, ele e seu amigo.
De repente, os trapezistas fazem um gesto que cala a platéia e o elenco. Todos silenciam como se presenciassem o inevitável: os irmãos se olham mais uma vez e começam a balançar no seu elemento como se aquilo uma flutuação fosse. Preparam o salto mortal.
O menino tremia e olhava as estrelas, procurando ver um dos Taviani já boiando no vácuo sem fim. O bode, lá do seu canto, irraciocinava.

Geraldo Maciel

De Inventário de Pequenas Paixões, Editora Manufatura, 2,000.

1.8.08

FOLHETIM # 1


Teses sobre o conto - (Ricardo Piglia )

1. Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.
2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.
3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.
4. No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.
5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.
6. A versão moderna do conto que vem de Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses", abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.
7. "O Grande Rio dos Dois Corações", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.
8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".
A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.
9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.
10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em "La Muerte y la Brújula", a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto"; com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe"; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.
11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato", dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

31.7.08

PARÁGRAFO


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El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha

CAPÍTULO 1: Que trata de la condición y ejercicio del famoso hidalgo D. Quijote de la Mancha

En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no há mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor. Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos y quebrantos los sábados, lentejas los viernes, algún palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda. El resto della concluían sayo de velarte, calzas de velludo para las fiestas con sus pantuflos de lo mismo, los días de entre semana se honraba con su vellori de lo más fino. Tenía en su casa una ama que pasaba de los cuarenta, y una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocín como tomaba la podadera. Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años, era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro; gran madrugador y amigo de la caza. Quieren decir que tenía el sobrenombre de Quijada o Quesada (que en esto hay alguna diferencia en los autores que deste caso escriben), aunque por conjeturas verosímiles se deja entender que se llama Quijana; pero esto importa poco a nuestro cuento; basta que en la narración dél no se salga un punto de la verdad.

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25.7.08

PROTOTEXTO # 1

QWERTY
O Qwerty é um ser fugidio como a lembrança, múltiplo como o desejo e esquivo como o abominável homem das neves. Só existe quando alguém, com um poder muito parecido com o de certos feiticeiros, quer que ele exista e tem meios de fazê-lo viver.
É completamente dependente do seu criador: tem cabeça quando lhe pomos cabeça, tem patas quando lhe nomeamos as patas, e é cego se nos esquecemos de mencionar-lhe os olhos. Tem a forma que queremos que tenha e, por isto mesmo, o Qwerty é um ser único. O último que criei tinha os olhos amarelos e emitia raios azuis. Tinha três patas cavalares, dois rabos diáfanos como caudas de cometa e não pisava no chão. Andava sobre um tapete laqueado em vermelho criado pelo jorro de urina que lançava pelas ventas dois metros adiante.
Um Qwerty é gerado pelo pensamento. Um Qwerty jamais outro. No entanto, pode ser duplicado. Uma mutação do Qwerty não necessita de um útero para ser gerado. Pode ser gerado pela luz, permanecer escondido em um local que não que não existe e ser modificado célula por célula, parte do parte, membro por membro enquanto é gerado.
Os ancestrais dos Qwerty são muito antigos e nasciam de uma substância grossa e negra que escorria da ponta de pedaços de bambu ou de penas de certas aves. Depois vieram as penas de aves metálicas. Alguns deles têm mais de três mil anos. Os Qwerty, como os conhecemos hoje, nasceram quando os homens descobriram que além de escravizar seus semelhantes, poderiam escravizar o tempo.
Alguns Qwertys têm vida longa, outros nem chegam a ser completados. Qwertys podem ser perturbadores. Podem nos levar ao sonho ou à loucura. E mesmo os criados por nós, nunca sabemos como realmente são. Um Qwerty pode fazer o milagre de nos mostrar o desconhecido, nos fazer ver o que nunca vimos ou nos tirar uma noite de sono. Na verdade, os Qwerty são seres incompletos. Uns mais outros menos. Quase sempre se completam na imaginação. É por isso que muitas vezes ele ali se aloja e torna-se quase impossível tirá-lo da cabeça.
Criar um Qwerty é uma tarefa difícil, mas não impossível. Basta obstinação, suor, paciência, imaginação e um pouco de fantasia, pois como dito antes, não há um modelo de Qwerty. O Qwerty é único na sua beleza, exclusivo na sua feiúra, pode ser alto ao ponto de tocar nas nuvens ou diminuto como a nossa sabedoria; é possível encontrar Qwerty munidos de asas ou implumes, pode ser bípede ou perneta, o Qwerty é singular.
Deles já se falava nos Upanishads, na epopéia de Gilgamesh, nos hieróglifos egípcios, no Novo e Antigo Testamento, no Livro dos Mórmons, nos livros apócrifos da Bíblia. Deles falaram Homero, Dante, Dante, Shakespeare, Cervantes e Euclides da Cunha. Alguns dizem que as inscrições da pedra do Ingá falam de Qwertys.
Os Qwertys são intangíveis e gostam de se alojar nos sonhos onde são muito poderosos. Tudo lhes pode ser atribuído, até a bondade. A história dos Qwerty é fascinante e terrível. E eles nisto são muito parecidos com os seres humanos.


Geraldo Maciel