27.8.08

CONTO



A doce rapadura da vingança




Quem pensaria que numa tarde como aquela, sem graça e sem mistério, com a luz do sol filtrada por nuvens no poente e alguns cachorros passeando na pracinha, iria acontecer o encontro de Aprígio Justo e Antunino?
Não era pra acontecer, porque nenhum dos dois fez por onde o fato ali desembocasse, mas aconteceu durante algumas horas em que um desejou lamber um sorvete de morango, e o outro não achou quem lhe comprasse um remédio na farmácia. Também porque, devido aos quinze anos em que tal fato vinha sendo construído, muitos até esperavam que este encontro jamais acontecesse ou, se tivesse de acontecer, decerto não seria assim tão improvisado pela surpresa.
Remontando-se o acontecido e o que fizeram os dois naquelas bobas horas, ver-se-ia o destino mexendo seus pauzinhos, a fatalidade calculando seus desígnios; alguns riscos sobre um mapa mostrariam as paralelas rancorosas que traçaram com seus rastros durante quinze anos, naquela tarde convergindo na pracinha devido a um cochilo da improbabilidade. E o pior deste capricho: nenhum viu o outro até que estivessem frente a frente.
Antes que se vissem, já os moleques se embrenharam pelos becos, e as portas e janelas foram se fechando. Como polícia não havia, o medo paralisava quem assistia pelas frestas, pois o desfecho era inevitável e não poderia ser interrompido: o assunto era terrivelmente particular.
O silêncio desses minutos arrastados que antecedem as tragédias existe mesmo, e é ele quem espalha a má notícia. E assim, em pouco tempo, se formou uma assistência, retraída nos anteparos das esquinas, dissimulada nos desvãos, nos balaústres, expectando ferro e pólvora.
Aprígio tinha suas cicatrizes morais e uma cicatriz medonha, real, de bordas salientes, que sangrava quando as lembranças vinham fortes, quase uma menstruação que lhe renovava o fértil útero da vingança. A cicatriz era um O quase perfeito, considerando-se as poucas letras do escritor, um terceiro olho afixado em sua testa pelo punhal rombudo de Antunino.
Antunino também tinha a sua, uma cruz não menos grotesca, mal escrita, profunda, roxa e torta, que ele carregava rancoroso e envergonhado.
Cada um guardava ódio ao outro na proporção da humilhação que imaginavam ter sofrido. O que Aprígio carregava tinha-lhe sido imposto numa briga de bêbados, onde Antunino, por pura bazófia e por medo de matar gratuitamente, lhe assinalara como um boi de pasto. Vã glória que lhe custou anos e anos de vida sobressaltada e fuga da vingança.
Anos depois, num descuido de retaguarda, num cochilo da vigilância, Antunino recebeu a marca daquela cruz, anestesiado pelo medo, ao se ver subjugado pelo ódio de Aprígio. Naquele momento, pensou que a morte era coisa de minutos. Não foi. Após caligrafar a sua marca na testa de Antunino, Aprígio lhe falou já quase calmo:
- Você tem seis anos, três meses e doze dias de vida. É o tempo que eu passei com sua marca. Você vai passar o mesmo tempo com a minha. Nesse tempo, você pode passar na minha porta, pedir água na minha casa, até me provocar que eu não vou levantar minha mão para você. Depois disso, eu vou caçar você. Vou sangrar você como faço com os porcos. Não esqueça: seis anos, três meses e doze dias!
Passado esse tempo, começou o martírio dos dois. Aprígio, que era açougueiro de porcos e cabritos, já não pôde oferecer carne de porta em porta, nem fazer, sem sustos, a entrega habitual de seus fregueses. Antunino, que comerciava com tecidos e miudezas, não podia expor suas mercadorias pelas feiras da região, pois no meio de tanta gente, como poderia perceber a aproximação do inimigo? Andar pela cidade era um exercício de sobressaltos, cautelas e excitação. Para se deslocarem com segurança, tinham desenvolvido o faro dos cachorros, a audição das lebres e o tato dos deficientes visuais.
Dormir, mesmo dentro de casa, com portas e janelas aferrolhadas duplamente, era sempre um sobressalto: coisa de meio sono, de sono inteiro com um olho só. Os dois se sentiam caçados, cada um sendo caçador. Quando se caminha em círculo, quem vai à frente e quem vai atrás?
Gastaram anos no estudo dos movimentos um do outro, de tal forma que cada um deles sabia mais do outro do que de si próprio. E tinham espias. Gente que dava notícias do trajeto e descaminhos de cada um, numa batalha de espionagem e contra-espionagem que, de tão perfeita, se anulava. Os dois faziam sua guerra fria particular, terrível e cheia de tensões, como se cada um carregasse no bolso da algibeira uma ogiva nuclear.
Apesar das tentativas de conciliação, dos terceiros que tentavam evitar a hecatombe, o ódio parecia recrudescer. De pouco adiantaram os embaixadores, os conciliábulos, as mesas-redondas. Os dois grandes lá não compareciam, e tudo continuava como antes.
Os serviços de inteligência de ambos funcionavam a pleno vapor. Não estancavam os relatórios:
- Ele comprou uma mauser nova!
- Ontem trocou o trinta e dois antigo por um trinta e oito quase novo!
- Treinou pontaria com muitos tiros no quintal da casa!
- Viajante lhe trouxe um punhal de aço inoxidável!
Até agentes infiltrados possuíam. Quinta coluna, agente duplo. Gente que queria ver o circo pegar fogo.
Quando os familiares reclamavam da exacerbação do conflito, da necessidade de paz, dos prejuízos econômicos que aquela guerra provocava, eles respondiam com uma retórica estratégica que, traduzida nas devidas proporções, significava exatamente coisas como: poder de retaliação, ataque preventivo, a paz na guerra, equilíbrio de forças, e vocabulário semelhante.
Isto tudo continuou até aquele dia, quando, sem querer, encontraram-se frente a frente, ali, na praça. Seria a hecatombe? Qual dos dois sucumbiria? Pelo arsenal de ódio acumulado durante tanto tempo, era de se esperar a morte dos dois, e dias de lamúrias e orações a leste e a oeste.
Quando viu o inimigo frente a frente, Antunino quis gritar alguma ofensa, mas as palavras quiseram sair todas de uma vez e atravancaram-se antes de chegarem à boca, e ele só conseguiu emitir grunhidos e bufos enquanto seu rosto adquiria aquela cor cerosa, âmbar, própria das horas decisivas e terríveis. Aprígio também não conseguiu articular seu grito primal, vomitar os sons da guerra: maquiou o rosto com a mesma cor usada por Antunino e teve um acesso de tosse intenso, porém breve.
Sacaram as armas quase ao mesmo tempo: a mauser niquelada e pálida mirou seu olho frio sobre Antunino, enquanto o trinta e oito, bojudo, grávido de seis filhotes, enquadrava Aprígio na ponta de sua mira empertigada. Agora era só chegar a ordem, a descarga elétrica no tendão do indicador, e a chuva de ogivas daria um ponto final àquela história.
Mas a logística desses exércitos individuais também tem suas falhas. Confundem-se as ordens, desencaminham-se as providências, atrapalham-se as iniciativas, entrechocam-se os bedéis da retaguarda. Pane? Duros ficaram os dois, a platéia sequer respirou. Num, rompeu-se algum fino duto na altura da cabeça? No outro, um destrambelho qualquer no miocárdio?
Miram-se minutos. Longos e agoniados minutos. Tempo de rever o passado em coisa de segundos; sentir, hipnotizado, a moenda da memória vomitar cada coisinha guardada, esgotar a cacimba de ódios, trazer de volta para uma última conferência o quarto de despejo da lembrança.
Sem que ninguém entendesse, as armas inclinaram-se para o chão, e os dois, como se tivessem combinado algo sem dizer palavras, dão-se as costas e saem da arena da pracinha.
Cada um voltou pro seu território, já no caminho refazendo as estratégias, a usina de ódio retomando a sua incessante fabricação de espuma e bílis, cada um organizando o tempo que teria ainda para se dedicar a lamber a doce rapadura da vingança.


Geraldo Maciel

23.8.08

FOLHETIM # 2


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 1

Guillermo Cabrera Infante

O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez até mais, pois podem muito bem ter existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos, que são a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, melhor; três grunhidos já são uma frase. Assim nasceu a onomatopéia e com ela a epopéia. Mas antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso não é um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção.
Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na memória coletiva.
Séculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo branco e o converteu em mito ao chamá-lo unicórnio. Embora a experiência fosse alheia, tomou e fez seu o tema do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde, outro contista enfeitou com metáforas (isto é, embelezou poeticamente) esse animal único com seu único chifre. Passados outros tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever (e, é claro, a ler), e outros animais e outros homens que se transformavam em animais povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era essa transcendência chamada religião.
Em outro século, quando outros homens já não acreditavam nessa religião de deuses tão humanos que se confundiam com os simples mortais, um deles, um poeta chamado Ovídio, escreveu As Metamorfoses. De religião, esses textos não tinham mais do que aqueles primeiros contos contados em volta de uma fogueira numa caverna. Isso fez do conto o gênero literário mais antigo e mais protéico.
Protéico, como se sabe, vem de Proteus, deus grego que estréia na cena olímpica com a "Odisséia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de tudo, mas mudava de forma para não ser interrogado. Isto é, fazia o contrário de um autor atual, que nunca muda de forma, mas procura sempre ser interrogado: pela imprensa, pelo rádio e pela televisão - e, às vezes, pela polícia. Creio desnecessário frisar que Proteus era uma metamorfose feita deus. Proteus está muito perto de prosa, que é o que os contistas cultivam. Protéico, prosaico - dá na mesma.
Os gregos, além de Homero e sua Odisséia, cultivavam o conto, e um romancezinho, que é o que é Dafne e Cloé, publicado no segundo ano da nossa era, foi seu provável precursor.
Mas são contos os fragmentos que fazem do Satyricon, de Petrônio, um romance, e um de seus mais memoráveis é aquele intitulado "A Viúva de Éfeso", um conto perfeito e muitas vezes citado, copiado até. Entre outros por Jean Cocteau, poeta tão teatral que transformou o conto em peça, ganhando-o para o teatro. O conto, logo protéico, parece desaparecer na Idade Média, mas na verdade se veste com os versos do romance, seja nos "romans courtois", onde aparece como história de aventuras, seja no "Roman de Renart", em que serve a um fabulário, não longe do zoológico de Esopo. Na saga arturiana (que não se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas), o romance adquire um tom mágico, quase místico, que lhe é exclusivo. Mas a história paralela do amor fatal de Tristão pela bela Isolda é, como quer Bédier, um conto de amor, de loucura e de morte cuja aura mágica não fica nada a dever aos modelos gregos e romanos. Mas o conto, sempre recomeçado, reaparece onde menos esperariam os trovadores medievais: no Oriente.
Caricatura de David Levine (New York Review of Books)

17.8.08

PARÁGRAFO # 2


Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariamcomela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.


VIDAS SECAS - GRACILIANO RAMOS. 89a. edição. Editora Rrecord - 2003.
Desenho: Aldemir Martins

13.8.08

EM BREVE! FOLHETIM:


UMA HISTÓRIA DO CONTO

POR GULHERMO CABRERA INFANTE

(EM CAPÍTULOS)

PROTOTEXTO # 2


HERANÇA

Ainda não és. Nadas neste lago transparente e espesso boiando como uma cortiça tonta, um pequeno bólido nunca lançado a lugar nenhum. E esperas. Esperas o clarão de luz, o ar que te provocará ardências desconhecidas, e quando saíres levarás o primeiro tapa que te carimbará na pele a violência que te acompanhará em cada esquina. Ouvirás meu choro e minha alegria, sentirás o quão morna são as minhas lágrimas e quão macia pode ser a minha áspera pele. Talvez o mundo te pareça muito estranho, mas saibas que ele te será tão mais estranho quanto mais tempo vivas, e que com ele e as coisas jamais farás as pazes por completo.
Se fores homem, a arrogância te habitará como um flagelo, a estupidez te será uma companheira inseparável e a ignorância te vendará os olhos. O suor te amargará os lábios, e o cansaço habitará as tuas juntas até a morte. A alegria te será servida a conta-gotas e herdarás tão pouca fé que te sentirás só mundo, apesar dos ruídos à tua volta. Amargarás a ausência da doçura que repeles e chorarás escondido como purgação dos pecados que não cometestes.
Se fores mulher, ai de ti se fores mulher! Sofrerás sorrindo como se isso fosse remissão, e as dores repartirão contigo o frio do leito. A ti não será dado o direito de ser protegida, mas a obrigação de ser o escudo do mundo. Serás uma usina de transmutação. Em ti, a amargura mudar-se-á em compaixão, a desesperança levará à fé e não ao desespero, a chama de tua esperança, mesmo trêmula, terá a obrigação de iluminar a noite das sendas do futuro.
Mas sei que serás mulher.
E sendo assim, deixo-te um alqueire de rugas, mapa antigo, nenhuma bússola que te guie, e uma dorna de lágrimas tintas que te umedecerá a boca; mãos rudes e dores pelo corpo, pequenas alegrias e rezas esquecidas. Também o ninho onde germinará o fruto a quem deixarás a mesma coisa que te deixo. Deixo-te a chave de nenhuma porta, a certeza de minha ignorância e uma interminável esperança que deves guardar como a um segredo.


Geraldo Maciel

10.8.08

DECÁLOGO DO CONTISTA


Horácio Quiroga


1 - Crê em um mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchecov - como em Deus.2 - Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes alcançá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem ao menos perceber.3 - Resiste o quando puderes à imitação, mas imite se a demanda for demasiado forte. Mais que nenhuma outra coisa, o desenvolvimento da personalidade requer muita paciência.4 - Tem fé cega não em tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como à tua namorada, de todo o coração.5 - Não comeces a escrever sem saber desde a primeira linha aonde queres chegar. Em um conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas.6 - Se quiseres expressar com exatidão esta circunstância: "Desde o rio soprava o vento frio", não há na língua humana mais palavras que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de tuas palavras, não te preocupes em observar se apresentam consonância ou dissonância entre si. 7 - Não adjetives sem necessidade. Inúteis serão quantos apêndices coloridos aderires a um substantivo fraco. Se encontrares o perfeito, somente ele terá uma cor incomparável. Mas é preciso encontrá-lo.8 - Pega teus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçastes para eles. Não te distraias vendo o que a eles não importa ver. Não abuses do leitor. Um conto é um romance do qual se retirou as aparas. Tenha isso como uma verdade absoluta, ainda que não o seja.9 - Não escrevas sob domínio da emoção. Deixe-a morrer e evoque-a em seguida. Se fores então capaz de revivê-la tal qual a sentiu, terás alcançado na arte a metade do caminho.10 - Não penses em teus amigos ao escrever, nem na impressão que causará tua história. Escreva como se teu relato não interessasse a mais ninguém senão ao pequeno mundo de teus personagens, dos quais poderias ter sido um. Não há outro modo de dar vida ao conto.

4.8.08

CONTO


Um salto para bem longe


Para João Batista de Brito

Havia o bode alpinista e o menino, seu coajudante. O menino, flutuando no mundo, sonhava com papagaios coloridos e pirulitos rasga-bocas. O bode, com uma inquieta alegria nas patas, exibia um enorme par de testículos sobressalentes. De comum, ambos tinham a inocência e uma submersa tristeza nos olhos.
O palco era o Fênix, um circo de panos apodrecidos, carcaça de glória do Fênix de mastros eretos e bandeirolas coloridas. Isto podia ser visto pelos restos do antigo pássaro que ornava o frontão de entrada, onde ainda se podia distinguir o contorno da majestosa envergadura e um ou outro desbotado tom do antigo colorido sob descuidadas demãos de reparo que mais os escondiam que os realçavam. Um palimpsesto da antiga condição.
Na verdade, o Fênix era um circo muito mais por necessidade e brio do que pela tortuosa espinha do mastro, a frágil paliçada de estacas ou a pele rota dos panos, esgarçada e transparente, já nem um biombo separando aquela arte e a vida lá fora. O picadeiro era uma redoma circular de pouco raio, e o palco um retângulo sem consistência de medidas.
Perambulava por povoados cada vez menores após haver se desgarrado da órbita de cidades maiores e ser colhido pela força irresistível da pobreza do interior, das pequenas cidades, vilas e povoados como aquele onde agora estava.
O bode e o menino, adolescentes, quase crianças, não trabalhavam na armação. Os adultos cavavam os buracos, esticavam os arames, estendiam os poucos panos.
O repertório do espetáculo era mínimo. Ia diminuindo com o tempo, por morte do artista titular, desistência de um ou outro ou contenção de despesa. O que sobrava era um pequeno número de entretenimentos que, de tão repetidos, já não tinham brilho, viço ou novidade.
O elenco era reduzido. Havia o bode e o menino. Havia Hércules, de quem a idade e a vida nas barracas chuparam os recheios musculares. Sua força se reduzira, e rasgar pratos de alumínio exigia agora um pequeno talho invisível na borda dos pratos de folhas mais delgadas, para o que contava com o desleixo ganancioso dos fabricantes. Hércules fazia ainda as vezes de porteiro e ajudante de picadeiro, e sua mulher, recém chegada àquele mundo, ajudava na bilheteria. Nos espetáculos, ela tentava ajudar na coreografia dos números de canto e dança. O macaco, senil, já não trabalhava. Limitava-se a catar pulgas e cochilar ao pé do mastro, o que não deixava de ser uma atração.
Havia Bengalinha, o palhaço, já velho, cansado da itinerância, dos palcos quase sempre vazios, de ter que ceder seu espaço para cantores lamurientos e sucessos de gosto duvidoso. A chama de palhaço e o carisma humorístico quase não existiam mais, só aparecendo vez ou outra, deixando sempre nele a impressão de que aquela fora a última vez, o último espetáculo. Mas ele sempre continuava. Com chuva ou noite estrelada, repetia os números, as piadas, já nem ouvindo a reação do público. Reagia como um funcionário público.
A cantora gorducha, com sua voz engordurada e seu sinal na coxa, deliciava o público masculino. Fazia sucesso, fosse qualquer o número que cantasse, estivesse rouca ou fora do compasso. Seu sucesso dependia mais das insinuações e da generosidade da abertura da saia do que de sua atuação cantante.
Os trapezistas tinham nome, renome até, segundo diziam. Já haviam voado sob os toldos coloridos do Grande Circo de Moscou, do Ringling Circo e do Gran Circo d’Itália. Apesar do estado atual de ambos, ainda ostentavam o nome de irmãos Taviani, um resquício da antiga glória, ainda conservado pela necessidade da aura que os nomes estrangeiros dão aos artistas. Era o elenco.
Após vários meses nas outras praças, quase sem conseguir atrair nenhum espectador, o circo Fênix conseguiu chegar ali no socavão da serra, até pouco tempo nem tendo estrada carroçável, e aonde nunca tinha ido um circo.
Na tarde da estréia, após ter baixado a poeira da novidade e terminado o trabalho de armação, o bode viu sair Bengalinha com seu séqüito de moleques anunciando o espetáculo maravilhoso. E quando o palhaço anunciou, à poeira e ao cochilo daqueles moradores, o espetáculo fantástico, alguma coisa de anormal aconteceu. Nuvens acumularam-se a leste, e do sudeste correu uma brisa fresca como há tempos não se via. Pessoas lavaram os rostos nas gamelas, e as crianças inquietaram-se como se fosse tempo de ir para a escola. À noite, quase houve tumulto em frente à boquinha de meia-lua da bilheteria. O circo lotou.
Queriam ver os trapezistas bêbados, os afilhados do vácuo, os inimigos da gravidade? Ou queriam ver somente o bailado no ar, o contorcer quase gracioso da cantora gorducha, coisas que as mulheres do lugar não sabiam fazer e nem os cipós da capoeira conseguiam imitar? As crianças, com certeza, esperavam por Bengalinha e seus cansados números, para elas ainda novidade.
As pessoas, por ouvir dizer, sabiam das maravilhas que no circo se faziam e queriam ver aqueles prodígios que a propaganda retumbante do megafone de lata anunciou pelas três ruas do povoado: o nunca visto salto triplo, mortal, sem rede, com os artistas de olhos vendados.
As maravilhas que a propaganda opera nos negócios! Ninguém imaginou ser impossível voar sem venda e sem rede, num salto triplo mortal, principalmente sendo os dois os irmãos Taviani. Afinal, aqueles dois trapezistas, mesmo um tanto debilitados e maduros, eram ainda os maiores. Tanto que há vinte anos se ouvia falar neles e, ali no socavão, foram embalsamados pela fama. E agora eles estavam ali! Por este motivo, o Fênix conseguiu lotar o semicírculo das arquibancadas e a dúzia de cadeiras à frente do picadeiro.
O elenco tomou um susto com platéia tão numerosa. Nestes tempos duros, a renda dos espetáculos mal dava para alimentar o elenco com uma refeição diária, e o translado de uma praça a outra era muitas vezes objeto da benevolência alheia, despertada pelos dotes físicos da cantora ou pelo medo de que o circo tirasse de circulação o pouco dinheiro que ainda girasse no local. Uma platéia abarrotada nesse tempo era coisa rara. Bengalinha voltou a sentir os calafrios das estréias.
Um Taviani, o mor trapezista, sentado a um canto, chamou o menino:
- Você foi ao mato dar comida ao bode? Ele tem de encher a barriga senão fica nervoso e não consegue fazer nada. E veja só como está a platéia hoje!
O menino já havia feito sua tarefa. O bode, a um canto, ruminava. Sua barbicha professoral tremia: mastigava o hábito. Os dois não tinham segredos.
- Será que nos outros dias também vai dar gente? Era a pergunta do menino.
- Vai. A praça é boa. Gente simples, sem diversão. Praça pra uma semana.
A resposta parecia pedir uma confirmação. O menino e o bode sentiam alguma coisa, um pressentimento, parente da premonição. Era algo mais que a emoção da estréia, mais que a novidade do circo lotado, coisa além do nervosismo do primeiro espetáculo, algo pesado e desconhecido, medo sem fundamento, surpresa que ainda não deu o bote.
O público murmura, coletivo, quando o pano abre e o mestre de cerimônias inicia a função: “Senhoras e senhores, distinto público, o Grã Circo Fênix tem a honra de apresentar...”, e inicia-se o espetáculo. O toldo da cobertura era o céu estrelado onde a Ursa Maior passeava sem pressa. E vem o malabarista, o equilibrista, o palhaço, o bode e seu domador, a cantora, todos recebidos pelos aplausos ardorosos da platéia. Por fim, anunciam os trapezistas. O público os recebe em silêncio, como se fossem monstros sagrados ou dois condenados à execução.
Os números se sucedem até que os Taviani sobem ao trapézio e começam a fazer algumas manobras. Esquentam os músculos e domam o medo, que é parceiro e padrinho de todos os trapezistas.
Não rufam os tambores. Rangem as juntas das cadeiras do palco, estalam as tábuas da arquibancada. Iniciam-se as manobras: vôos no vácuo, mãos e pulsos, garras suadas segurando a probabilidade com a força dos náufragos. Os Taviani estão perfeitos. Felizes. As palmas lhes dão de volta a glória que pensavam estar aposentada, a lembrança dos toldos coloridos sobre a cabeça, a vontade de ousar, como só ousam os jovens artistas.
O público delira e pede mais. Os irmãos Taviani excedem as possibilidades de um trapézio tão curto, de um espaço tão pequeno, de uma impulsão limitada. A ausência de rede não permite mais que aquilo. O público não sabe o que é rede, nem conhece o medo dos artistas: pede o salto mortal. Por trás dos panos, os outros artistas gelam.
Os Taviani parados, em pé sobre as plataformas, olham-se como gladiadores irmãos. Abaixo deles, as coisas são tão pequenininhas! Só chegam os gritos, as palmas. Não vêem os olhos esbugalhados e ansiosos, os acenos desesperados de Bengalinha que lhes grita:
- Não! Sem rede, não!
Quem ouve Bengalinha? Sua voz já é fraca e sem convicção, e aqueles outros são bem mais numerosos e gritam, aplaudem como há tempos não ouvia um Taviani.
Eles sabem que numa qualquer noite, nessa noite, a corda pode se romper, e um deles irá flutuar numa bolha de medo e morrer? Sabem que todo vôo é como se fosse o último vôo? Que, se dali se desgarrarem, serão ejetados em direção às estrelas, onde não há público, e todo espaço é um trapézio de onde nunca se cai porque tudo nele é uma queda sem fim? Ou tudo é bem mais simples, é somente o sangue em corredeiras, o suor nas mãos geladas, o medo e a coragem abraçados, só? É por isso que rezam antes do salto?
Resguardados em um canto, o menino e o bode ouvem os urros da platéia e olham para o céu. Acompanham fiapinhos de nuvens deslizando no azul escuro enquanto estrelas juntam-se à tristeza no fundo de seus olhos. E ouvem os gritos do elenco tentando impedir o salto dos irmãos. O menino agarra-se ao bode compreendendo que aquilo era grande e perigoso. Os adultos haviam enlouquecido ou se embriagado. Tinha medo de ficar sozinho, perdido naquela barraca armada no meio do mundo, ele e seu amigo.
De repente, os trapezistas fazem um gesto que cala a platéia e o elenco. Todos silenciam como se presenciassem o inevitável: os irmãos se olham mais uma vez e começam a balançar no seu elemento como se aquilo uma flutuação fosse. Preparam o salto mortal.
O menino tremia e olhava as estrelas, procurando ver um dos Taviani já boiando no vácuo sem fim. O bode, lá do seu canto, irraciocinava.

Geraldo Maciel

De Inventário de Pequenas Paixões, Editora Manufatura, 2,000.

1.8.08

FOLHETIM # 1


Teses sobre o conto - (Ricardo Piglia )

1. Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida". A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.
2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.
3. Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.
4. No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.
5. O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.
6. A versão moderna do conto que vem de Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses", abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.
7. "O Grande Rio dos Dois Corações", um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.
8. Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".
A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.
9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.
10. A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em "La Muerte y la Brújula", a história 2 é uma construção deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto"; com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe"; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.
11. O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. "A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato", dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.