28.9.08

FOLHETIM # 4


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 4


Guillermo Cabrera Infante


Kipling cultivou todas as modalidades do conto, do monólogo à conversa, sendo alguns de seus contos feitos inteiramente de digressões, como queria Sterne, mas também de invenções memoráveis. E muito antes que Conrad ou Somerset Maugham descobrissem o mundo exótico do Oriente. Com a diferença de que, para Kipling, nascido em Bombaim, aquilo era a vida vivida e vívida. A França não teve um Chaucer, mas teve um mestre do conto no século 18, tardio, mas nada lerdo em sua arte da ironia, exercida com uma inteligência incomum. Refiro-me a Voltaire, cuja obra-prima, Cândido, não é um romance, e sim uma fábula com uma moral em cada página. Os franceses tiveram de esperar todo o século 19 para que, afinal, surgisse um dos maiores contistas de todos os tempos, Guy de Maupassant, assombroso autor de sucessivas obras-primas do gênero. Maupassant teve Gustave Flaubert como mestre e Émile Zola como mentor. Mas nenhum dos dois, embora tanto Flaubert como Zola tenham escrito contos memoráveis, conseguiu superar o discípulo nascido para o conto. Sua influência foi enorme em toda parte e teve seguidores (se não verdadeiros plagiários) na Inglaterra, nos EUA e na Rússia.
É na Rússia que Maupassant encontrará um rival extraordinário, Anton Tchecov, que começou contando anedotas e piadas na imprensa e acabou transpondo seus principais contos para o teatro, com uma arte inesperada. Tchecov, que podia reivindicar para si Nicolai Gogol (autor de "O Nariz" e "O Capote", entre outros contos), era um admirador de Tolstói, que escreveu contos como relatórios de guerra e foi contemporâneo de outro mestre cultivador da forma breve, Ivan Turgueniev. Mas a influência maior no autor de "A Dama do Cachorrinho" e "A Cigarra" é, evidentemente, Maupassant. De Tchecov derivam Górki e todos os contistas russos do início do século 20, que pareciam brotar da terra russa - até que chegou Stálin e, com seu cultivo forçado do realismo socialista, transformou a fértil literatura russa num deserto com tratores.
Outro seguidor de Tchecov foi, na Inglaterra, Somerset Maugham, mestre do conto inglês e mundial. Foi, ainda é, um autor com uma popularidade que se estendeu aos palcos e às telas: várias obras-primas do cinema, como "A Carta" (do diretor William Wyler, de 1940), se baseiam em seus contos. Maugham, em seus contos exóticos, foi influenciado pelas narrações dos "mares do sul" de Conrad e, por sua vez, teve influência sobre outros contistas, evidente sobretudo nos contos urbanos de John Cheever e John Updike, típicos produtos da revista "The New Yorker".

25.9.08

PROTOTEXTO # 3




Nome é uma tatuagem sonora colada à pessoa ao nascer. É útil quando a presença não é possível e a ausência não é aceita. Quando é escolhido e registrado, deseja-se que ele distinga um inexpressivo indivíduo dos demais, agregue-lhe uma qualidade que o nomeado deva ter. Há nome longo, curto, seco, úmido, insípido, voluptuoso, comum ou raro. Há, contudo, os preferidos. Aqui, todos, ou quase todos, chamam-se José, quando não sua abreviatura, Zé, ou seu diminutivo, Zezinho, ou o seu contrário, Zezão, mas todos José. Além de uma homenagem ao pai do Cristo, este nome serve para marcar aqueles cujo destino é o mourejar de sol a sol, sem as devidas recompensas de bóia farta e sono reparador.
Como todos se chamam José, José não distingue ninguém, daí surgirem os acrescentamentos: da Guia, de Ribamar, do Patrocínio, e tantos outros assim grifados para aqueles que fazem questão de ancestralidade e raízes; para os demais, há o comum trivial: Zé de Lica, Zé de Faustino, Zé de João de Otilia, e para os ciosos de sua linhagem, temos os Zé de Tereza de Zé de Joaquim, tendo-se sempre à mão e na lembrança que isto quer dizer, na verdade, José filho de Tereza, filha de José, filha de Joaquim, o mesmo valendo para qualquer outra seqüência de nomes que aparecem em pencas pelo mundo afora.
No meio desses zés-ninguém, temos Josés muito famosos, sendo o caso de José Lins do Rego, o de José Américo de Almeida, José Condé, José de Alencar; os Josués, de Castro e Montelo – que tiveram seus nomes atrapalhados por um U intrometido que caiu ali entre o S e o E sem que ninguém tivesse pedido -, Ledo Ivo que sem que se saiba por que não usa o seu José; Jorge Amado, com quem aconteceu a mesma coisa acontecida aos Josués, só que seu caso as palavras eram duas consoantes e não uma vogal; João Cabral, que de tão econômico nas palavras, terminou surrupiando o Zé que ali deveria haver fazendo companhia ao João; Graciliano Ramos, esse parece que tirou o Zé pelo mesmo motivo de João Cabral e mais uma dose de ranzinzice; Gilberto Freire parece que tirou o Zé por puro esnobismo; Castro Alves, esse de nome Antônio chegou a assegurar mais de uma vez que seu nome deveria ser José e não Antônio; com Gonçalves Dias aconteceu a mesma coisa; Já Ariano Suassuna, que não tem Zé no nome, disse e redisse inúmeras vezes que não lhe desgostaria ter um Zé apragatado antes de seu nome atual, já tão famoso. Esses são os bem conhecidos entre tantos de menor nomeada. Até um dos nossos maiores cronistas e o nosso mais conhecido versejador chamam-se José, sendo um Gonzaga Rodrigues, o outro Limeira.
Zé, metade das letras de José, um terço das letras de Joseph e Yussuf, um quarto das letras de Guiseppe. Apesar de maiores, nenhum desses nomes supera o nosso breve Zé. Quem não é José ou Zé, cobre o erro do padre na pia batismal, culpe a ignorância do escrevente do cartório ou veja se não há outro motivo a encobrir tal falta.
Mesmo agora, com o rádio e a televisão, com os informes do mundo e o conhecimento das culturas de outros povos, apesar da invasão de nomes estrangeiros, tudo indica que não jogamos a nossa identidade na lata do lixo: estão aí os Andersons, os Cleivsons, os Gleidsons, de feição e influência bretã; os Ronnie Vons, os Schumachers, dos arianos adeptos; os Michel e os Platinis, nomes franceses; todo nomes estranhos, não nossos, mas que terminam soando familiares quando pronunciados com um José antes, isto sem falar na familiaridade conseguida se ao invés do José for usado o abreviado e sonoro Zé que, querendo ou não os detratores dessa invasão cultural e onomástica, não deixa de soar simpático e ecumênico, se é que tal palavra cabe aqui.

10.9.08

CONTO


O OLHO


Geraldo Maciel

Perdi o olho direito em uma brincadeira com meu gato de estimação. Doeu um pouco, senti que as coisas, apesar de inteiras, me chegavam pela metade, e, afora a dor inicial, quando o globo ocular vazou como uma bexiga perfurada, não tive vontade de matar o gato. Perder o olho não era uma coisa grave.
Depois que a ferida cicatrizou, após a retirada do curativo que evitava contaminação, fui à farmácia e comprei um olho, uma dessas maravilhas da farmacologia moderna.
Em casa, destampei o vidro, suguei o líquido, quase uma pasta, e coloquei as quinze gotas recomendadas na cavidade ocular. Senti uma ardência inicial, já prevista e alertada na bula, e esperei cerca de um minuto sem fechar a pálpebra. Pronto: eu tinha um olho novo, um olho, cinza-esverdeado com raias amarelas.
Por ironia do destino, engano da balconista ou ato falho meu, comprei, sem querer, um olho de gato. Notei depois, ao ler os detalhes impressos na caixa do remédio. Não me incomodei. Estava vendo bem. Dizem que o gato tem uma excelente visão, sendo extremamente apurada sua visão noturna; tem a desvantagem de não permitir uma acurada variação de cores, mas para quem é míope isso não ia fazer muita diferença.
Dizem que os gatos guardam os raios da aurora para exibi-los à noite. Não senti nada de diferente, talvez porque esse novo olho ainda não havia visto uma aurora. Amanhã, quem sabe... Senti, no entanto, que meu campo de visão era mais amplo e que podia perceber qualquer movimento ao meu redor, por menor que fosse.
Ninguém percebeu a mudança. Só o gato que, a princípio, olhou-me meio espantado, eriçou os pelos e exibiu seus dentes afiados como se me desafiasse. Eu também senti um arrepio, mas não cheguei a rosnar para ele. Senti, isso sim, certa ausência de privacidade, um sentimento de perda, coisa que só mais tarde pude confirmar com absoluta certeza.
Entrei no banheiro e demorei mais que o habitual sob o chuveiro. Mesmo depois que me enxuguei com a toalha, senti uma estranha vontade de lamber algumas partes do meu corpo que eu julgava não completamente limpas. Dormi sem ligar a televisão e enrosquei-me com a cabeça apoiada nos braços dispensando o cobertor. Sonhei com gatas e ratos.
No dia seguinte, acordei ainda de madrugada, contra meu costume de acordar mais tarde, e fiquei esperando o sol nascer. Queria ver a aurora. Queria guardar os seus raios amarelos nos olhos, ou no olho, para ver o que aconteceria à noite.
Fui à geladeira, peguei o leite e uns biscoitos e coloquei na vasilha do gato. Estranhamente, tomei alguns goles do leite gelado, coisa que eu detesto ou detestava, e mastiguei alguns biscoitos. O gato, que até aquele momento havia se escondido não sei aonde, chegou à cozinha e, ao me ver com sua vasilha de leite, pulou rosnando raivoso sobre mim e quase me arranca o outro olho. Quando consegui atirá-lo a um canto e sair da cozinha, tinha os braços e o peito arranhado pelo meu bichano de estimação que agora me detestava.
Percebi tudo. Com o olho que eu agora possuía, eu deixei de ser dono e agora era um concorrente. Os gatos são animais absolutamente territoriais e não abrem mão de seu espaço facilmente. Teria que resolver isto rapidamente: agarrei o gato, anestesiei-o com éter, arranquei-lhe os dois olhos.
Quando as órbitas do gato sararam, comprei-lhe dois olhos humanos. Agora, reina a paz aqui em casa. À noite, após tomar meu pires de leite com biscoitos, saio pela janela e vou caçar pelos becos e vielas escuras, guiado pelo faro de mulheres com mêstruo recém-findo, enquanto o gato cochila em casa frente à televisão.

9.9.08

FOLHETIM # 3


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 3

Guillermo Cabrera Infante


Edgar Allan Poe inventou com três contos - "Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério de Marie Roget" e "A Carta Roubada" -, ele sozinho, a literatura policial, que são o conto e o romance de mistério. Todos os cultivadores do gênero recém-criado foram seus epígonos, de Arthur Conan Doyle, criador do insólito Sherlock Holmes, a Dashiell Hammett e Raymond Chandler, romancistas que foram também contistas e, de passagem, renovaram o gênero. Uma epígona (se alguém disse "jóvenas", eu posso muito bem dizer "epígona"), Agatha Christie, disse: "O conto é o domínio natural da literatura de crime e mistério". Muitos contistas, quase todos anglo-saxões, fizeram do conto seu habitat, que era como uma casa mal-assombrada. Todos seguiram o ditame de Poe, que disse que o conto "é uma narração curta em prosa" e definiu o conto breve como uma peça literária que "requer de meia hora a uma hora e meia ou duas de leitura". Eis aí um importante modo de usar, "com cuidado". Mas há - ah! - leitores descuidados. Para estes, a melhor maneira de ler é no avião - e um best-seller ou livro que se compra porque se vende.
Os herdeiros de Mark Twain são tão numerosos quanto os seguidores de Poe, mas os primeiros, que chamaremos aqui humoristas, atentaram apenas para o lado luminoso da lua de Twain -sem enxergar suas regiões de sombra e de penumbra. O mais bem-sucedido deles foi Damon Runyon, com suas historietas em que o submundo de Nova York aparecia povoado de gângsteres sentimentais, jogadores sementais e uma porção de mulheres de moralidade duvidosa e um (pouco) siso legível como sexo. O cinema e o teatro, onde ninguém lê, criaram um Runyon ilustrado para iletrados. Runyon, que fazia rir, ia ao banco sempre rindo.
Não foram só os contistas com humor que tiveram sucesso popular. A partir do século 19, houve também quem cultivasse - e fosse popular por algum tempo - essa estranha e elusiva planta chamada "conto fantástico". Na Inglaterra, onde se desperdiçara a tradição realista iniciada por Chaucer, houve muitos autores de fantasias cujo objetivo não era induzir o sonho, e sim o pesadelo. Lembro, entre outros, Arthur Machen, Saki e Roald Dahl.
Na Irlanda, terra de luzidas lendas nada lúcidas, Sheridan le Fanu foi um contista de mistério e terror cuja coleção In a Glass Darkly (em Dublin, cidade alcoólica, tomam o espelho, "glass", como copo, e o livro se chama "Em um Copo Escuro") é um dos clássicos do conto de terror como horror. Sua contrapartida foi mais tarde o norte-americano H.P. Lovecraft, um precursor da ficção científica, gênero praticamente inventado por H.G. Wells na Inglaterra. A ficção científica encontrou no conto sua forma perfeita para uma arte imperfeita. Vale registrar que todos os mestres do conto de horror anglo-saxão têm, também eles, em Poe seu antecessor primordial.
É preciso abrir aqui um parágrafo para Rudyard Kipling, talvez o maior contista inglês de todos os tempos. Kipling não fica nada a dever a Poe ou a Mark Twain, e é para a Inglaterra o que Maupassant foi para a França e Tchecov para a Rússia: um contista natural. Começou publicando em jornais indianos e, quando afinal foi a Londres, então o centro do universo literário, tinha apenas 20 anos (Kipling é quase nosso contemporâneo, morreu em 1936). Deixara para trás a Índia, embora fosse justamente seu lado muçulmano, mais do que o hindu, o que mais lhe interessava no subcontinente.


2.9.08

FOLHETIM # 3


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 2

Guillermo Cabrera Infante


Os árabes, entre o harém e a areia
As Mil e Uma Noites é a mais monumental compilação de contos do final da Idade Média. Esses contos são a mais traduzida (e conhecida) literatura árabe depois do Corão. Suas histórias ("Ali Babá e os 40 Ladrões", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa" e "Simbá, o Marujo") são hoje tão populares como quando foram traduzidas aos diversos idiomas europeus. Sua influência é perceptível desde Boccaccio e Chaucer. Mas, já antes deles, um extraordinário escritor espanhol, o infante d. Juan Manuel, incluiu em seu "Libro de los Enxiemplos" mais de um conto árabe extraído de "As Mil e Uma Noites", então reconvertidas em tradição oral.
Ao contrário do que acontece com os contos contemporâneos na Europa, As Mil e Uma Noites têm mil e um autores, e a esperta princesa Sherazade é um autor coletivo que conta com voz de mulher. São, em todo caso, contos de encanto, e até seu título em árabe é encantador, encantatório: "Alf Layla wa Layla". Dessa vasta coleção de contos rastreou-se a origem até o século 9º d.C. Sua última forma é do século 16. Isso quer dizer que, com seu feitiço oriental, o livro cobre quase toda a Idade Média cristã - embora diga, no início de cada conto: "... mas Allah é mais poderoso". Em seguida vem uma espécie desconhecida de poesia que as infiéis e cruentas traduções não conseguiram aniquilar. Sherazade é a mais poderosa máquina de matar o tédio e a crueldade do rei que sempre assassinava a consorte de cada noite, à exceção da contista, uma mulher amena, apesar de ameaçada.
Chaucer repetiu o esquema em seus Contos de Canterbury, mas em verso. Quem o conseguiu em prosa foi Boccaccio, em seu imitado, inimitável Decameron. É curioso que Cervantes, um artista supremo, tenha buscado inspiração nos contos italianos e não nos exemplos do infante d. Juan Manuel, que, diga-se de passagem, deu a Shakespeare seu "Relato de Mancebo que Casó con Mujer Brava". Acontece que Boccaccio é um contista natural, tal como a contadora de histórias árabe. Cervantes, que inaugurou o romance moderno, o mais imitado, chamou o Quixote de livro e de "novelas exemplares" seus contos, declarando que "de modo algum poderás fazer", leitor, "mistifório". Mas revelou seu ofício e arte: "Meu intento foi armar (...) uma mesa de carambolas". E acrescentou: "Onde cada qual encontre com o que se entreter".
Um escritor cairota, Naguib Mahfuz, em suas Noites das Mil e Uma Noites, que o editor cataloga como romance (os editores são capazes de chamar de romance a lista telefônica, que pode não ter narração, mas tem uma porção de personagens), esse escritor consciente, demasiado consciente, tenta se tornar uma Sherazade assídua. Mas fracassa em seu intento. O livro quer ser árabe e é apenas egípcio.
Por outro lado, Los Cuentos Negros de Cuba são minhas mil e uma noites negras, contadas por uma Sherazade branca, Lydia Cabrera, para entreter as noites em claro de uma amiga agonizante. No final do livro, a doente já estava morta, mas os contos vivem na imortalidade da literatura. Eu os classifiquei, qualifiquei, como "antropoesia".
A trama tecida noite após noite por Sherazade, Penélope contista com milhares de pretendentes, levou muitos escritores - desde d. Juan Manuel, Boccaccio e Chaucer - a tentar uma imitação em que diversos talentos buscam emular o encantamento árabe. Poucos o conseguiram, mas um escritor nosso contemporâneo, Manuel Puig, em seu O Beijo da Mulher Aranha, é uma Sherazade argentina que a cada noite conta um filme inventado para seu companheiro de cela, seu vizir cruel: completamente surdo às dádivas orais que lhe oferece Puigrazade - assim como é cego a suas investidas sexuais.