25.11.08

UMA HISTÓRIA DO CONTO - PARTE 7


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 7

Guillermo Cabrera Infante

Faulkner, como Fitzgerald, também foi alcoólatra e, como Fitzgerald, também foi a Hollywood e serviu como tarefeiro de ouro (ou dourado), especialmente para o diretor Howard Hawks. Mais esperto ou mais duro de domar, Faulkner ia a Hollywood, mas, assim que recebia seu dinheiro, voltava correndo para Oxford. Não a universidade inglesa, mas o pobre povoado do Mississippi onde ele nasceu e morreu, no mais profundo e racista Sul. Ao contrário de Fitzgerald e Hemingway, Faulkner era um reacionário público e um liberal privado. Dessas tensões são feitos não apenas seus romances mas os muitos contos que ele escreveu.
Alguns de seus romances, como Palmeiras Selvagens, cujo belo título acaba de ser surrupiado e estropiado pelo diretor Oliver Stone, e Desça, Moisés, são feitos de contos mais ou menos longos, entre os quais algumas obras-primas como "O Urso". Outras de suas narrações breves, como "A Rose for Emily" e "Barn Burning", constam de todas as antologias e integraram a seleção feita pelo próprio Faulkner em suas Selected Stories. William Faulkner chegou a publicar um livro de contos detetivescos. Chama-se Knight's Gambit, e seu fio condutor é uma atividade que ninguém associaria ao narrador de "Enquanto Agonizo" e "O Som e a Fúria": o xadrez.

17.11.08

CONTO




O TELEFONEMA


– Alô! É do CRV?
– Aqui é o Centro de Resgate da Vida, vinte e quatro horas no ar para oferecer apoio e divulgar o amor à vida... Qual é o seu problema?
– ... Eu...
– Se for desânimo tecle 1...
– Eu quero me suicidar, mas não escolhi a forma...
– Se for desilusão amorosa, tecle o 2...
– Não, eu quero acabar com minha vida!
– Se for problema financeiro tecle 3...
– ...E quero saber qual a forma menos dolorosa...
– Se for angústia por ter sido traído, tecle 4...
– ... Pode ser veneno?
– Se for separação litigiosa tecle o 5...
– Cianureto... Como adquiro cianureto?
– Se for depressão tecle o 6.
– ... Mas também pode ser tiro... Dói muito?
– Se for brincadeira de quem não tem o que fazer tecle o 7
– ... Ou enforcamento.
– Se tiver dúvida do que realmente você sente tecle o 8...
– Acho que vou pular de um edifício...
– Se quer voltar ao menu principal, tecle o 9... E obrigado. O CRV agradece o seu telefonema, esperando que este seja o último.
– Se realmente você quer morrer, tecle o 0. É o IML... Ou aguarde a telefonista.
– Alô? Maria, telefonista do CRV, às suas ordens!
– Maria? Maria eu quero morrer! Suicídio!
– Em que posso ajudar?
– Quero achar o melhor jeito, o menos doloroso!
– Todos doem muito.
– ...Tiro na cabeça!
– Patético! Quer chamar a atenção. Vai sujar o tapete da casa!
– ... Me jogar de um edifício!
– Espetacular, mas pode ferir alguém na queda, amassar carros e perturbar a ordem pública!
– Enforcamento!
– Você vai ficar roxo! É horrível! E a língua de fora? Você já pensou que vão tirar fotos suas?
– Cianureto... Posso tomar cianureto!
– Dói demais! Depois, não é fácil encontrar. Isso é coisa de nazista! Use coisa mais democrática, pelo menos!
– Também posso me jogar diante de um automóvel...
– Sem saber se o carro tem seguro? E o transtorno que vai causar ao dono do veiculo?
– Sendo assim, como é que eu faço pra morrer?
– Tenha paciência, espere a morte. Ela não falha. E você somente vai encher o saco de sua família por mais algum tempo. Tenha uma boa noite!






(De Os Colecionadores, inédito)

2.11.08

CONTO

Amaro e Dulce



O amor de Dulce e Amaro era exemplar. Tão exemplar que parecia nem existir. Era a atração magnética dos nomes ou a aparente indiferença dos sólidos convívios? Sem procurarem respostas para tais perguntas, afastavam com arte os espinhos da vereda da convivência, aparavam as arestas dos mal entendidos, interceptavam as flechas frias da inveja em pleno vôo, pisavam na cabeça da serpente sibilante da maledicência.
Era assim que viviam Amaro e Dulce.
Desconheciam a extensão pública das carícias, da mesma forma que a submissão costumeira de um se curvando à grosseira autoridade do outro. Eram iguais.
Quando se olharam reconheceram-se porca e parafuso; casulo e crisálida; engrenagens.
Eles não tinham filhos, logo ali onde filho era a única posse que não distinguia ninguém. Mau olhado contra a harmonia ou um instante de amnésia do destino? Isto parece que os aproximava mais, apesar do zumbido sussurrado nas alcovas, dos risos enviesados nas calçadas ou das insinuações flutuantes no ar. Mas quem sabe os segredos da reclusão dos amores de cada qual? Quem sabe as formas, as preferências, a partitura dos gemidos, a postura da lassidão e do repouso, senão quem se deleita em tais intimidades? E quem pode discernir a vontade de Deus ou da natureza no cipoal de coisas e significados que estão por acontecer? Quem pretende agarrar com o saber os infinitos mistérios que correm por esses túneis sinuosos do corpo, onde convivem mistérios, coincidências e probabilidades?
O que é saber viver? Cultivar amor ou camaradagem no deserto da ignorância exige muito. Requer muitas maciezas, trejeitos, renúncia e simulação de cegueira. Então, um não via o disfarçado olhar do outro - inocência ou gula - passear, planando, sobre os contornos das mocinhas de aflorantes peitos e púbis rarefeito?
E o outro não via o mal disfarçado prazer de um ao abarcar com os olhos as protuberâncias incontidas dos rapazinhos de buço ralo e voz dissonante? E não deixavam a névoa embaciante da compreensão envolver essas fraquezas entrevistas?
O que é viver então? Trabalho, compreensão e alegria.
Ordenhar água limpa do úbere seco da natureza, entender que esse emaranhado de sangue, fibras, nervos e calafrios nos faz estranhos a nós mesmos, quanto mais a outros fora de nós! E trabalhar a alegria como uma argamassa, como uma sublime caliça nascida de algum lugar dentro de nós, como um vômito ou um pensamento, para colar os cacos da aridez das coisas, do estranhamento das pessoas e acalmar o redemoinho da existência.
Talvez pensando assim, construíram um lar de calmaria. Suor e sela noite e dia; rebanho e pasto, além de toda a lida decorrente: troca, transporte, abate, ferro e fogo: um. Fogo e arte, alecrim e manjericão nos acepipes; fartura e cheiro sobre a mesa; espermacete sobre o linho, vincos afiados com ternura: o outro.
A força e a destreza de um complementavam o delicado e o sutil do outro. E era assim porque para se viver, um só não pode tudo, há que dividir as lidas, os afazeres, tocando a cada um aquilo mais de acordo com o gosto ou a natureza, a aptidão e o desejo. O comum, o coletivo, fica sendo a alegria, o divertimento, os planos, cama e lençóis.
Os olhos de um seguiam o outro na dança dos currais: boi e brida, pata e laço. Músculos retesos dominando a desordenada brutalidade dos bovinos. Com que sincero gosto o outro elogiava a surpresa permanente da fartura trivial, o festim rotineiro da mesa bem disposta. E nisto a relação de ambos se perpetuava.
Não havia viagem sem presentes no retorno: calçados macios, tecidos finos e de motivos coloridos; perfumes, revistas de moda e decoração. Não havia retorno sem banquete, música e bela mesa. Fartura e guloseimas; forno e fogão.
Nas despedidas, um montado, armadura floreada em couro sobre couro, forte, rijo, domando a irrequieta pressa do alazão com punho firme; cabelo em cachos, batom, espora e brincos: Dulce. O outro do terraço, franzino e colorido, aspergindo adeuses, já impaciente, antevendo os presentes do retorno: Amaro.


(De Aquelas criaturas tão estranhas, Rio Fundo, 1995.)