23.2.09

CONTO


Carnaval

Geraldo Maciel

Anteontem vendera o relógio para almoçar. Hoje já não sabia o que fazer. Tinha um sábado de carnaval pela frente, nenhum tostão no bolso e uma farra coletiva que o esperava nas ruas da cidade. Talvez fosse essa a salvação. Mesmo sem dinheiro, beberia. A solidariedade dos bêbados talvez até propiciasse alguma comida num boteco, um lanche.
Com o que tinha arremedou uma fantasia, espalhou um resto de Maizena no rosto e na cabeça e saiu para a rua já imitando um bêbado, apesar das 10 horas da manhã. Ali no centro, encontrou caveiras, mendigos, dráculas, bichas e travestis, todos esperando um clima que a cachaça ainda não conseguira estabelecer. A sua imitação devia estar perfeita, mas ainda era cedo para tentar abordar algum grupo, acercar-se de uma rodinha de samba. Andou pela praça até começarem a circular alguns carros com troças, rodas de samba motorizadas com filhinhos de papai atirando jatos de lança-perfume para o ar. Algumas horas depois a praça estava cheia, ele de barriga vazia e tentando agarrar algumas garrafas que sempre escapuliam, nunca chegava à sua mão, a não ser quando já estavam vazias. Não conseguira abordar nenhum folião que tivesse bebida disponível e possibilitasse um gole de qualquer coisa. Um gole só. Talvez sua imitação não fosse convincente ou sua timidez não estimulasse a prodigalidade dos bêbados.
Já sentia certo mal estar, uma tontura, um desfalecimento se instalando pelo corpo. A fome. Agora iria criar coragem e abordar alguém, o primeiro que aparecesse. Foi até uma lanchonete que estava aberta e ficou olhando o interior do balcão-vitrine.
Ah, como gostaria de ser aquelas abelhinhas! Passeando sobre o mel do pão doce, lambuzando-se nos cristais de açúcar, comendo aquela casquinha marrom, o miolo alvo, aventurando-se naqueles buraquinhos cheirosos, melando as patinhas cabeludas naquela geléia amarela e perfumada do creme! O rosto refletido no vidro do balcão, fundia a sua imagem com o pão, com as abelhas, numa proximidade tentadora. Fez um gesto com a boca e sua imagem abocanha um naco de pão com abelhas, creme, açúcar; na boca real o mesmo vazio que sentia nos últimos dois dias.
O mesmo vazio na boca, agora com uma catarata de saliva pegajosa e o hálito ruim daquela cárie. Gostou da sua imagem de pirata. O lenço colorido e brilhante estava bem; o tapa-olho desenhado é que lhe dava a imagem de quem havia levado um murro; os brincos, apesar de meio esverdeados, compunham bem a imagem. Os outros foliões passavam refletidos pelo vidro, mas não ameaçavam apossar-se do seu pão, de suas abelhinhas.
Uma tribo indígena passou cambaleante às suas costas. Voltou-se para ver. Gostava do som dos pífanos. O compasso da música era estranho. Parece que tentava acompanhar o índio forte, lá na frente, que lutava para manter ereto o estandarte, um enorme cocar de penas e vidrarias que o vento tentava derrubar e a aguardente dificultava manter a prumo. Brancos, também embriagados, tentavam chafurdar na esquisita harmonia da tribo. Pelo descarnado da cara, o estado dos dentes e a textura das fantasias dava para ver que os índios estavam piores do que ele. Um carnaval de fodidos, pensou. A folia dos deserdados.
Esqueceu por um momento suas abelhinhas para ver uma troça de estudantes que passava. Agitou os braços, ensaiou uns passos, mas logo sentiu que não podia continuar. Não havia bebido, não havia comido. Preferiu admirar as roupas sumárias das moças, corpos roliços, pernas bem feitas, a pele bronzeada destacando uma penugem loura nas coxas, nos braços. Que diferença entre sua pele e a das moças que passavam; um desfile de sultões e odaliscas contra um faminto pirata cor de icterícia. Os adornos, a pintura daqueles rostos, contra ele e seu punhado de Maizena sobre a cabeça.
Como pode ser? Um pirata, imitando um bêbado desde cedo, sem um tostão no bolso e ainda por cima sem conseguir que alguém lhe dê um gargarejo de bebida em pleno sábado de carnaval!
Por que não voltar para seu quartinho fedorento, armar sua rede e dormir, dormir. Com o sono a fome passa, também ela adormece. Por que não adoecia logo como aqueles seus colegas de olhos cavos e chiado no peito, seus vizinhos de quarto? Não seriam ruim uma febre, uns vômitos, pois só assim teria a ajuda de Darlene e Suzana, também vizinhas, e que mesmo após saírem do cabaré às quatro, ainda faziam chá, traziam bolachas e esquentavam os estudantes doentes com o calor dos seus peitos, botava-os para dormir com o cheiro do seu perfume.
Mandei fazer uma linda fantasia bem diferente por ser toda de capim. Essa música, cantada agora por aquela velhinha bêbada, o deixa mais tonto, lembrando da mãe, do pai, de sua casa, do velho rádio de olho mágico que diminuía quando entrava a Rádio Clube de Pernambuco. Gostava da voz de Claudionor Germano um dos poucos cantores que ouvia quando era menino.
As pernas já estavam bambas, mas foi até um grupo de homens vestidos de mulher onde algumas garrafas rodavam de mão em mão. Conseguiu pegar uma na passagem e tomou um grande gole. Uma explosão. Relâmpagos infinitesimais disparam em suas veias, um tufão de luz e calor subindo, tomando o fôlego, girando a praça e os foliões, deixando-o inconsciente por segundos. Depois, uma grande calmaria, um fogo dentro, o início da percepção indivisa das coisas. Mais alguns goles, e as coisas começam a adquirir cores mais vivas, outras se distanciam, depois vem um véu que dilui os contornos, mistura tudo numa suave confusão. Mais alguns goles e as pernas ficam mais bambas ainda. Melhor sentar. Volta à vitrine, volta a olhar suas abelhinhas embriagadas de mel. Apóia-se na parede. Vem uma ligeira náusea, um engulho, um rodopio.
É noite, muita luz, e sem saber como, está no meio do salão de um clube que ele nem sabe qual é. Só alegria, luz, bebida, lança-perfume, belas fantasias. As mesmas garotas de pele bronzeada e penugem loura sobre as coxas agora o abraçam, acreditando talvez que sua cor de icterícia seja pintura, fantasia. Assim, pula toda a noite sem reparar na comida sobre as mesas. Só quer as garrafas, o suor daqueles corpinhos esguios, o porre da lança que o atira quase na borda do paraíso. Pega seu lenço, faz um jato e o aproxima do nariz. Ainda percebe os primeiros clarins de vassourinhas entre a aspiração profunda e o apagamento completo.
Acorda com o bafo quente das narinas do burro do catador de lixo soprando no seu rosto. Pensa tratar-se do jerico que come fantasias - ainda aquela música - e levanta meio adormecido. Na madrugada quase fria, divisa a praça e aqueles mesmos figurantes do dia anterior caídos sob bancos, acariciando garrafas, abraçando postes de luz. Alguma coisa pesa, não sabe bem se no peito ou no estômago. Pensa no baile sem ter certeza, ainda, se foi sonho e sai em busca de seu quarto, de sua pensão. Talvez agora venha uma gripe, tenha alguma febre, quem sabe uma pneumonia leve e possa ter, como os outros, as bolachas, o chá, uma sopinha; possa adormecer com o adocicado perfume de Darlene, se proteger com os ternos seios de Suzana.


(Do livro "Aquelas criaturas tão estranhas" Ed. Rio Fundo - 1995.

UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 10

Guillermo Cabrera Infante

Horacio Quiroga é o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos, quá, quá, quá) e um louco perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num acidente de caça (caçava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois países reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai pode ser uma desgraça, mas perder um padrasto me parece um descuido.
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juízes qualificaram de acidente. Quiroga se casou, e, não muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mulher a passá-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso dizê-lo, foi a vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio.
Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque parece uma violenta telenovela e é mais interessante que sua ficção - que não é menos violenta. Um de seus livros de contos se chama A Galinha Degolada. No conto que dá título e tom ao volume, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma linda irmãzinha. Mas os dois irmãos vêem - ou melhor, observam - a madre degolar uma galinha para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha.
Li os contos de Quiroga, todos, na adolescência e acreditei em todos. Eu era, como vocês já devem ter deduzido, mentalmente são, mas impressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem com a expulsão deste encontro, eu não os leria nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido também que Horacio Quiroga era dependente não só de morfina mas da literatura de Poe.
Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabeça bem no lugar, é Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis Borges só porque eram amigos e colaboravam em empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos, Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez mais individual e distinto, não apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a mais comovente história de amor da literatura em espanhol do século 20. Chama-se A Invenção de Morel e, embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou conto longo e, para mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho francês "cherchez la femme".