26.10.08

UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 6


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 6

Guillermo Cabrera Infante


Hemingway e Tarantino
O conto americano do século 20 nada deve a Maupassant, mas sim a Tchecov. Seu renascimento lembra mais Twain do que Poe e começou, como ocorrera com Twain, com uma literatura regional que pulava as fronteiras do Meio-Oeste para chegar a Nova York e daí ao mundo. Seu pioneiro se chamava Sherwood Anderson, patrocinador de William Faulkner e modelo de Ernest Hemingway. Seu livro Winesburg, Ohio (conhecido na América do Sul e em Cuba como Las Novelas de lo Grotesco, embora não sejam romances, e sim contos, e essa história de grotesco seja gratuita, mas não deixa de ser um título com gancho) continha uma nova visão do mundo adolescente num lugarejo de Ohio, e sua linguagem, coisa bem importante, era entre ingênua e sábia.
Faulkner, que graças a Anderson publicou seu primeiro romance, é famoso como romancista, ou melhor, como um poeta falastrão, mas escreveu meia dúzia de contos memoráveis. Hemingway, por sua vez, é mais contista do que romancista: um artista que renovou a prosa moderna americana com seus diálogos sofisticados para conversar com primitivos, que são de uma mestria ainda atual. Seu conto "Os Assassinos", em que apenas com o diálogo se oferece uma amostra do mal sob a forma de uma conversa aparentemente casual, revela uma violência latente que nunca se faz patente.
Desse breve conto partiu a renovação do romance policial com Hammett e Chandler, que escreveram primeiro contos de mentira e de morte. Um filme recente, "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, com seus diálogos recorrentes, intermináveis e perigosos, não teria lugar se antes não tivesse existido "The Killers". Seu título mesmo, direto e brutal, serviu ao cinema desde que este começou a falar: diálogos ditos com o canto da boca, que é como se lêem, sem mexer os lábios, as conversas de Hemingway.
Dos grandes escritores americanos dos anos 20, Scott Fitzgerald é o único que frequentou a universidade, mas nunca chegou a se formar. Todos, portanto, foram autodidatas. Alguns, como John Steinbeck e William Faulkner, exerceram as mais variadas atividades, quase sempre manuais. Ernest Hemingway se dedicou ao jornalismo -que é quase um trabalho manual. O único instrumento que se tem de aprender a utilizar é a máquina de escrever, e Hemingway sempre foi um mau datilógrafo. Todos eles eram contistas respeitáveis, mas, à exceção de Hemingway, o cultivo do romance ocultou essa qualidade.
O exemplo mais evidente é o de Fitzgerald. Todos vocês já leram ou sabem que se deve ler O Grande Gatsby, festejado pela crítica, favorecido pelo cinema em produções coloridas e em preto-e-branco, com Alan Ladd, o perdedor nato, e com Robert Redford, numa versão chocha de Alan Ladd. Alguns conhecem seu conto "O Diamante do Tamanho do Ritz", mas poucos sabem que faz parte de seu livro Contos da Era do Jazz, e ninguém sabe nada de suas coletâneas All the Sad Young Men e Taps at Reveille. Depois de sua morte, foram publicados dois volumes de contos, Afternoon of an Author e The Pat Hobby Stories, uma compilação surpreendentemente leve para um tema dolorosamente autobiográfico: as aventuras e desventuras de um escritor de aluguel em Hollywood, onde o autor morreu.

17.10.08

CONTO


UM ESCRITOR



UM ESCRITOR AMIGO MEU acaba de lançar um livro. É um livro original, tão diferente e revolucionário que ele não sabe como classificá-lo. A síntese perfeita entre o signo e seu oposto, entre a palavra e o silêncio. Um livro revolucionário. No lançamento havia oito pessoas. O namorado do autor, dois amigos ligados às letras profundas e radicais, uma tia idosa que o sustenta, uma irmã, um amigo do namorado, um transeunte e eu. Oito. Ele completava os nove e estava feliz.
Um dos amigos das letras radicais disse algumas palavras, durante uma hora, e eu tive que falar do livro, relembrar algumas passagens da nossa adolescência, quando estudamos juntos, de nossa amizade e afinidades literárias. A tia chorou uns quatro lenços de cambraia, a irmã somente três; o namorado, um pouco afastado, olhava embevecido e tímido para o maior escritor do mundo. São assim os lançamentos. Afinal é a coroação de dias e noites, noites e dias de suor e labuta, de labuta e suor, com pequenos intervalos para uma olhada no espelho e busca de inspiração.
Ele demorou exatos dez anos para construir sua obra. Dez anos. Noites de labuta e canseira. De insônia e labuta. Pelo menos foi o que ele afirmou na hora dos agradecimentos. Dois anos de hipérboles, metáforas, paráfrases e aliterações; não sei quantos mais de reestruturação, reescritura e acréscimos; e o restante de condensação.
Ao fim do segundo ano tinha 510 páginas escritas, 251.620 palavras, 1.647.760 caracteres com espaço, 3920 parágrafos e 22.570 linhas. Um castelo de palavras, produto da primeira fase, a de aglutinação.
Os dois últimos anos ele os gastou polindo, cortando, buscando a essência. Quando fez uma primeira leitura, retirou os erros mais grosseiros, as repetições, por si mesmas desnecessárias, e os parágrafos obscuros, economizou 56 páginas; na segunda leitura, cuidou de retirar o excesso de adjetivos - os manuais falam dos tais adjetivos e de seus malefícios para o estilo -, e lá se foram 32 páginas; com o excesso de quês implicantes e repetitivos cortou 16 páginas. Ao fim dessa primeira passada, estava com 407 páginas e uma ligeira impressão de que seu romance tinha tudo para ser uma grande obra.
Na terceira leitura, notou que ainda havia muita gordura, muita coisa que não contribuía para a solidez da obra e resolveu cortar. Aplicaria algo que leu de um determinado crítico de literatura que dizia: se você notar que retirando um capítulo ou parágrafo ele não faz falta, corte. É porque realmente ele não serve para nada. Começou com os capítulos. Dos trinta e oito, cortou quatorze. Os vinte e quatro restantes, após a poda dos parágrafos mal ajambrados, obscuros, desnecessários ou ilegíveis redundaram em 231 páginas.
Semanas depois, uma leitura sobre Graciliano e sua febre pela concisão, somada com outra sobre a poesia de João Cabral, fez com que devastasse dez capítulos, que refundidos resultaram em oito e 126 páginas. Dessas 126 páginas, retirou todos os personagens, deixando só o principal e com isso seu texto ficou reduzido a 45 páginas. Podando as páginas onde havia algum tipo de ação do personagem, restaram-lhe 19 páginas. Com um texto tão condensado, não havia necessidade de divisão em capítulos, o que economizou três páginas.
Na última leitura, resolveu deixar somente os monólogos interiores que tivessem relação direta com o suicídio – tema do livro -, o que lhe custou sete páginas. Cortou, depois, oito delas por não terem um cunho filosófico mais profundo e se viu frente a frente com meia página altamente condensada, profundamente densa.
Mas, pensando bem, nada seria mais profundo do que o ato do seu personagem. E trocou aquele parágrafo profundo por esta frase banal, mas tão representativa: Ele iria se matar. E tal concisão levou-o à idéia genial: A morte é o absoluto. O que é uma frase para representá-la? E riscou a frase dando origem àquela sua obra de tantos anos. Pelo menos foi o que ele disse na hora dos agradecimentos.
A crítica não tomou conhecimento. Os resenhistas passaram ao largo, e as más línguas acharam outras coisas de que ocupar.
Vendeu oito exemplares no lançamento, embriagou-se e começou a se preparar para escrever o próximo.


Geraldo Maciel



(Do livro de contos inédito Os Colecionadores)

9.10.08

CONTO

O CONCERTISTA E A CONCERTINA

Para Maria Valéria Rezende


O concerto não era um espetáculo, era uma despedida. O cenário era aquela rua longa e deserta, com um vento frio escoando entre as casas, removendo folhas secas e papéis, como se fantasmas varressem aquele anfiteatro onde, afastadas, algumas árvores espreitavam, gatos de pálpebras semicerradas cochilavam nas biqueiras, e o resto do universo - uma grande abóbada azul-escuro embebida de estrelas, invisíveis planetas e difusas nebulosas -, logo acima dos telhados, era testemunha indiferente do que acontecia aqui em baixo.
As casas eram antigas, altas, como se tivessem sido espremidas umas contra as outras por uma força desconhecida. Naquela noite, o relógio quase não andou e o frio da noite fez as pessoas deitarem cedo.
Apesar disso, mesmo sendo quieto o lugar e silenciosas as pessoas, o material de que é feita a vida borbulhava sem parar. Uma moça jovem deitou com o namorado na sala de sua casa enquanto sua mãe cochilava e seu pai olhava as estrelas no quintal; alguns maridos viraram de lado e dormiram, enquanto outros tentaram povoar o mundo como manda a lei; alguém roubou uma galinha depois da meia noite; mais adiante alguém parou de contar histórias de almas e lobisomens; um outro sentiu uma pontada no peito, um seu compadre teve disenteria; há quatro moças menstruadas, seis mulheres grávidas e dois ou três moleques se masturbando em suas redes; alguém faz um chá, um e outro tossem; um dorme sonhando com suas dívidas, outro não dorme pensando no que não recebe; um dorme por ter comido em demasia, muitos se ressentem da barriga vazia; uma acalenta e dá o peito, outro ronca, mas não dorme direito. Um bêbado flutua no sereno e os cachorros incomodam suas pulgas.
E por fim, uma nuvem úmida, perfumada e ondulante, vai se espalhando, ocupando a rua, preenchendo as casas, acariciando os ouvidos, acordando os dormentes, despertando os que cochilam e envolvendo os acordados. A moça jovem que deitou com o namorado sente o segundo tremor pelo seu corpo; sua mãe que cochilava desperta do torpor e seu pai continuou olhando as estrelas, mas agora sem prestar atenção a elas; os maridos que dormiam acordaram, e os que tentavam povoar o mundo, tentaram novamente; alguém abandonou a galinha que roubara depois da meia noite; aquele que contava histórias emudeceu; as pontadas no peito daquele desapareceram, estancou a disenteria de seu compadre; as quatro moças tiveram seu fluxo interrompido e a essa altura as seis mulheres grávidas já somam sete, enquanto os três moleques ainda se masturbam em suas redes; alguém fez e tomou um chá, um e outro pararam de tossir; um acorda e esquece suas dívidas, outro não dorme e esquece os créditos um momento; um dorme por ter comido em demasia, muitos se ressentem da barriga vazia; uma acalenta, dá o peito e ouve, outro para de roncar e escuta. Um bêbado continua flutuando no sereno e os cachorros deixam em paz as suas pulgas.
Era a música. O concerto. O concertista tocava a czarda de Monti que ninguém ali conhecia, a não ser ele, e que uma vez aprendida, em um lugar distante e como se fosse um segredo, dormia nas dobras da sua concertina, no interior do fole, como uma coisa sagrada. No primeiro acorde, o vento que andava célere, deu uma meia volta sobre as casas e retornou mais suave, como se quisesse ouvir a melodia que saía da concertina; o vento frio virou aragem, e a platéia – os homens, os bichos, as pedras, as árvores, os ares, os fantasmas e o infinito -, respirou com calma, dando lugar ao som que preenchia aquela parte da abóbada sobre o mundo.
E aquela imersão maravilhosa que todos sentiam vinha do jorro saído daquela caixa de artifícios, a pequena maleta de sons, uma concertina de oito baixos, de fole prateado, com suas fileiras de botões emparelhados como em uma cartela de comprimidos. Aquela caixa, sonora matéria de sonho e desejo do concertista, era como uma mulher amada. Fora descoberta por ele em uma vitrine de uma loja de ferramentas, recebida por conta de um débito insolvível, e desde então achou canto cativo no coração do enamorado concertista.
Quanto custa? Uma montanha de dias de trabalho, outra montanha de noites sem dormir, afora o ciúme de ser traído e abandonado, desprezado por outro de fortuna, fortuna que ele como artista não ousava possuir. Pecúlio? Nenhum! Que pode ter um artista solteiro, amante de saraus, bebida, certas diversões e nenhum emprego ou bem de família? Uma cama, um colchão de palha, uma mala e mais nada que possa se transformar em moeda sonante, a única música para o dono do armazém e atual dono da bela concertina? Por outro lado, que pode um artista sem o instrumento da sua arte, vivendo ao sabor dos instrumentos que a bondade alheia ou o coleguismo dos outros possa lhe proporcionar? E como sofre um artista com a asma dos foles resfolegantes e remendados que o desleixo de artistas menores não repara; é triste como o choro de um velho o som desafinado de muitos instrumentos que tem tocado, nada é pior que o ruído cavo que se cria quando se preme um botão e do instrumento só sai o bruto ar, o esgar do fole, como se aquela caixinha, delicada como uma criança, estivesse tísica.
E durante meses que duraram anos a pequena concertina ficou exposta aos olhares indiferentes da maioria e aos ávidos olhos do apaixonado concertista que toda semana lhe fazia uma visita. E numa delas, entrou na loja, foi até o balcão onde despachava o comerciante e lhe perguntou: Posso experimentar? Fazer um teste? Podia. Colocou-a no colo, abriu o fole lentamente, ela respirava como uma criança. Premiu os botões brancos, um a um, baixinho, ouvindo a afinação e gozando a sonoridade. Pediu resposta dos baixos, e ouviu aquele ronronar macio, acariciante e puro.
Sabe tocar? Sei. E por que não toca? Jurei só tocar em instrumento meu. E lhe veio a tentação de fazer um solo, uma improvisação de Pedacinho do céu ou de Escadaria, quebrando a jura, mas aquietou-se. Só toco em coisa minha. E quanto custa? E a resposta cavou um abismo entre ele e a concertina e lhe doeu como se fosse a recusa da mão da mulher amada. E é à vista? À vista é. E o concertista voltou para casa com o coração em pedaços e pensando coisa ruim. Comprar a prazo! Ele não vende. Roubar a concertina! Fazer de conta que ela era uma moça, sua noiva, e roubá-la, fugirem juntos como se noivos fossem. Depois, passados os alvoroços, enviaria emissários ao comerciante e proporia um trato, pagamento parcelado, já que com ela ele podia pagar as prestações. Impossível? Muitos casamentos foram feitos assim e ninguém morreu ou foi para a cadeia por isso.
A concertina anoiteceu e não amanheceu. Fugiu com o concertista para lugar incerto e não sabido. O comerciante esbravejou como um pai enganado e fez registro na polícia. Suspeito? Não sei quem foi, mas desconfio de um que vivia namorando minha concertina e não tinha dinheiro para comprar. E à raiva espumosa do comerciante se seguiram as diligências preguiçosas do delegado, e o mundo abriu-se e fechou-se, e nada de a concertina e o concertista aparecerem.
E como se fosse um furto de noiva, de verdade, numa tarde achegou-se manso e cauteloso um emissário ao balcão do comerciante. E embaixador que era, investido das astúcias que essa profissão exige, destilando a maciez da voz e repelindo a brusquidão do gesto, numa convincente dialética tentou mostrar ao comerciante que o que ele achava preto, na verdade, era branco, que o que estava dentro, na verdade estava fora, que o que parecia ser escuro, se bem olhasse, era a claridade; e tanto parlamentou que o interlocutor terminou aceitando uma conversa mais pé-no-chão, bem pé-de-ouvido, e perguntando: o que é que você quer? Sabendo ele que se tratava do desaparecimento, do roubo ou do rapto de sua concertina e que aquilo parecia ser a única maneira de tirar o prejuízo, tão importante quanto salvar a honra de uma filha.
Aceitas as desculpas do ato subversor - tresvario de um artista apaixonado e pobre -, seria retirada a queixa da polícia e estabelecido um trato com o seqüestrador enamorado: teria trinta dias para pagar a concertina, sem que faltasse um tostão sequer; caso o trato não vingasse e a honra do compromisso fosse manchada, ele ficaria preso, junto com a concertina, mas se ousasse tirar dela qualquer som, a bela concertina seria destruída. Poderia haver castigo maior? Não havendo como dizer não, foi selado o pacto e o concertista riu, primeiro, quando pensou na alegria de ter sua concertina para sempre, e chorou, depois, quando pensou no que teria de fazer para transformar esses trinta dias numa eternidade.
O concertista tocou na feira e lá lhe atiraram alguns trocados; tocou na missa e lá lhe deram uma parte da esmola das almas; tocou nos cabarés e as putas lhe mandaram parte da féria embrulhada como se fosse um charuto; tocou um batizado que lhe rendeu nada, quase; e não houve casamentos nestes dias; tocou no enterro de um morto, mas este era seu amigo e a amigo não se cobram certos favores. E mais não tocou porque não havia onde, e contando o pecúlio sentiu um calafrio.
Vendeu, então, a cama, o colchão e os lençóis, vendeu a mala e um par de sapatos; empenhou um escapulário e uma parelha de roupas. E contabilizou metade e mais um tanto daquilo que devia pelo trato. Pensou em vender seu suor, mas não achou quem dele se engraçasse. Quis vender a roupa do corpo, mas seria preso pela lei. Só se vendesse a sua alma, mas aqui ninguém compra almas, muito menos a de artistas como ele, que tem pouco peso e pouquíssimas virtudes. Apelou para o jogo do bicho, mas a sorte surrupiou alguns trocados do seu incompleto patrimônio. E lhe restaram os suores frios, o desespero galopante e um impiedoso calendário a lhe mastigar o tempo que restava.
E porque o calendário engoliu o tempo com voraz apetite, chegou aquele dia, ou melhor, aquela noite, antecedente do fatídico dia em que o concertista cumpriria seu trato e arrebataria de vez a sua concertina. E era por isso que no meio da rua, sentado em um tamborete, com a concertina ao colo, o concertista se preparava para a despedida. Nunca mais tocaria sua concertina e, já que não poderia mais tocá-la, nunca mais tocaria concertina alguma. O dinheiro estava incompleto, numa sacola, aos seus pés. E no seu colo a concertina, de onde saía czardas, a música que aprendera em segredo e que o fazia flutuar.
No início da música os sonhos se recolheram, os roncos silenciaram, as luzes se acenderam, as cortinas se afastaram, as portas de abriram, e homens mulheres e crianças, meio sonâmbulos e sorridentes, caminharam para o meio da rua onde um concerto reunia a concertina e o concertista. Só a luz da casa do comerciante ainda dormia.
Os moradores, como se agissem de forma combinada, depositavam, um a um, suas últimas moedas na sacola do concertista, enquanto a luz da casa do comerciante acorda. O concertista gela e a platéia volta-se para a luz. Alguém pega o saco e conta as moedas. O comerciante abre a porta e sai à rua. Aproxima-se da pequena platéia. Alguém lhe estende a sacola. O comerciante pega a sacola e lentamente conta o dinheiro.
– Falta uma moeda! Diz.
– Estes são os últimos tostões de todos. Nem mais a caixa das almas tem.
O comerciante devolve a sacola. Quer a concertina. Quando o concertista começa a retirar os suspensórios do instrumento, o bêbado levanta, tira uma moeda do bolso, coloca dentro da sacola e lhe diz
– Toque mais uma!
Quando o dia amanhece, o vento frio acaricia o concertista que dorme sob uma marquise, agarrado à sua concertina. Ao seu lado, o bêbado continua flutuando no sereno e os cachorros não deixam em paz as suas pulgas.



(do livro O Concertista e a Concertina - Editora Manufatura, 2005)

FOLHETIM # 5

UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 5


Guillermo Cabrera Infante


Se James Joyce tivesse morrido logo depois de publicar Dublinenses, ainda assim seria considerado um escritor notável e um grande contista. Traduzir é reescrever. Traduzindo Dublinenses, tive a oportunidade de encontrar os "tricks" e tiques de Joyce mas também seus magistrais contos originais e sombrios e sua escritura cômica.
"The Dead" (que traduzi como "El Muerto") é uma obra-prima dolorosa e um dos grandes contos escritos em inglês, quase um romance, por seus personagens inesquecíveis e sua extensão. "The Dead" não é um precursor do Ulisses, e sim uma peça acabada em si mesma, de uma prosa milagrosamente extraordinária. Não se poderia deixar de falar de um dos escritores mais originais do século 20, Franz Kafka, inventor da fábula com moral teológica, ou seja, metafísica. Sua influência se faz sentir em muitos escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer, ou genuinamente gentílicos como Milan Kundera, que o reclama para a literatura tcheca, embora Kafka tenha escrito em alemão e pertença à cultura talmúdica. Felizmente para nós, que não somos nem tchecos nem judeus nem alemães, Kafka pode ser lido com verdadeiro deleite literário.Um epígono de Kafka, judeu como Kafka, apareceu não na Tchecoslováquia, mas na Polônia: Bruno Schulz, contista. Seu "Lojas de Canela" é de uma originalidade delicada: uma visão da vida judia numa cidadezinha da Polônia que oscila entre a magia e um doce realismo. Schulz, não podemos esquecer, foi assassinado por um tenente da SS nazista, castigo tremendo apenas por estar parado numa esquina sem fazer nada. Ao contrário de Kafka, nunca nem sequer sonhou seu final. É que o totalitarismo é sempre inimigo da literatura.