1.7.07

Esporas de Prata




Entre lençóis, recatos e gemidos aconteceu o que transformou Ana em um pingo de luz, um buliçoso ponto de calor crescendo na escuridão. E em pouco tempo começaram os rituais da sua recepção, os preparativos para o seu conforto, o polimento dos rústicos sinais de sua realeza.
Enquanto a mãe pisava sobre coxins, o pai, Andolfo, expedia emissários, estafava cavalos, contratava agrimensores, confirmando os limites de suas possessões. Poliu as pratas, apalpou o ouro, acariciou os braceletes e trancelins que agora encontravam o motivo de sua existência, abandonando a esterilidade dos tesouros.
Confinou bezerros preparando carnes tenras para Ana; selecionou fartos úberes para o seu deleite; podou fruteiras e adubou sombreiros para a satisfação e o repouso da pequena rainha.
E Ana do seu berço escuro enviava sinais de suas exigências: repulsas inusitadas, gostos impensáveis, desejos incomuns.
Na noite em que Ana nasceu, o céu raiou-se de chuva de prata e estrondos incessantes. As rabecas e concertinas rangeram e resfolegaram toda a noite. Abriram-se as comportas das pipas de aguardente. Animais foram trinchados em regozijo. O povo teve acesso aos frutos da terra por um dia.
Ana cresceu entre rendas delicadas e mesuras silenciosas, mas alheia, quase, aos tributos e a vassalagem que todos prestavam à sua beleza.
E para Ana mudavam as estações a um simples desejo seu. Quando ela galopava, pradarias se desenrolavam à sua frente como tapetes; a natureza fazia chover no seu quarto de banho todos os dias, e a brisa a envolvia no sono substituindo seus lençóis.
Tudo para Ana.
E tanta beleza terminou por colocar uma indagação inevitável: Quem, entre os habitantes de tão dispersas moradias, seria o preferido de Ana? Quem ousaria julgar-se merecedor de tão alta prenda? Sua beleza não humilharia os pretendentes?
Em busca dessa taça organizaram-se fanáticas cruzadas e, como as anteriores, sempre inúteis. Em busca de sua atenção organizaram-se justas ruidosas, competições infindáveis. As selas mais ajaezadas, os peitoris mais floreados, os cavalos mais esculturais não emocionavam Ana; os cavaleiros mais audazes, as mais belas feições, a contenda mais temerária, só conseguiam a sua risonha indiferença ou o seu aplauso sem afetação.
Andolfo se divertia com a submissão de tantos cavaleiros e até se comprazia com o acréscimo de poder que isso lhe proporcionava.
Então apareceram as esporas de prata. Um rosto bronze escondendo a inquietude misteriosa de uma raça; uns cabelos tão escuros como o poço sem fundo das origens de sua beleza; um ginete andaluz tão perfeito e maciço como nunca houve igual.
A beleza de sua voz rompeu o escudo de cílios semicerrados que protegiam Ana. O magneto indecifrável dos olhos de Ana traçou o fio invisível que o norteou no labirinto de escuros corredores. Um bálsamo sagrado besuntou as rangentes dobradiças.
Entre lençóis, êxtase e suspiros, aconteceu o que transformou Ana na matriz de uma nova linhagem.
Ela então comunicou ao pai, com a naturalidade com que as rainhas comunicam suas vontades, que podia suspender todos os torneios, deixar repousarem todos os cavalos e permitir que as flores bravas voltassem a renascer nas arenas e nos terreiros:
- Vou ter um filho.
Andolfo ouviu a notícia com a mesma indiferença exterior com que escutava relatórios sobre abundância de colheitas ou pragas invisíveis nos rebanhos:
- Quem é o pai?
Ana anunciou o que sabia ser o início de um sumário e inevitável processo de condenação. E como uma fada que não pode modificar uma maldição, mas atenuá-la com o seu poder, sentenciou:
- Não quero minha filha órfã.
Andolfo não achou necessário dizer sim, pois um desejo de Ana se consumava sem que fosse necessária a sua anuência.
Era madrugada quando chegaram os caçadores e seus cães de narinas de bússola:
- Encontrem o de cabelos negros e esporas de prata nem que seus cavalos gastem as patas até o tornozelo e tragam-no aqui sem um único arranhão!
Andolfo não dormiu até olhar de frente aquele que vencera todos os torneios sem em nenhum deles tomar parte; o que numa solitária cruzada derrotara todos os infiéis que rondavam aquele sagrado templo e diante da platéia de cães e caçadores anunciou a sentença:
- Enquanto Ana e seu filho viverem você viverá. Porém jamais montará seu cavalo; jamais tocará um violão ou cantará; jamais verá Ana e seu filho!
As pradarias continuaram se desenrolando frente ao galope de Ana.
Na noite em que a filha de Ana nasceu, repetiu-se todo o ritual de alegria e toda a ruidosa comemoração que Ana havia tido.
Andolfo convocou novamente os caçadores, suas armas e seus cães:
- Os ciganos que forem encontrados dentro de minhas terras, nelas ficarão para sempre; os que estiverem fora, nela jamais pisarão.
E despachou-os sob os relâmpagos dos fogos de artifício, para dentro da noite escura da vingança.
E em tal noite são pálidos os reflexos dos punhais silenciosos; invisível o rubro borbulhante da sangria; os gritos esmorecem antes de serem escutados e os assassinos betumam os ouvidos para fugirem ao canto tentador da piedade.
Os cães ainda lambiam sangue , no focinho e os cavalos espumantes de suor ainda não haviam se aquietado quando Andolfo completou o pacto: sangue e silêncio contra ouro e prata.
Os assassinos voltaram para sua noite enquanto Andolfo, segurando um lampião, vagueava pelos corredores, tendo a certeza de que nada poderia mudar o curso de suas certezas, ninguém o surpreenderia, agora, com um inusitado ato ou disfarçada malícia. Tão logo fosse tempo, reiniciaria os torneios, anunciaria as competições, onde os melhores, os mais audazes, novos cruzados, se digladiariam até o máximo de bravura, até onde a coragem quase toca a insanidade ou o ridículo, em busca da filha de Ana. O que ele só saberia muito tempo depois é que um dos assassinos rompera o tímpano de cera e que agora carregava no arção da sela, navegando o sereno numa sua cesta de vime, uma criança pequenina, de cabelos muito negros e pele cor de bronze, tendo sob as roupas, como um talismã, um lindo par de esporas de prata.