18.6.07

Dever cumprido


O Ermo é um caldeirão onde se formam os mormaços que rondam mundo afora. Lá não voam pássaros nem nascem flores. Só répteis e roedores se dissimulam entre pedras e tocas escuras. Não consta em cartas geográficas, mapas ou levantamentos de qualquer espécie. Ninguém até hoje reclamou sua posse e as cercas se desviam daquela depressão descomunal com medo de se perderem e nunca fecharem o círculo.
Tempos atrás apareceram uns homens soturnos, vasculhando aqueles segredos com lunetas, fotografias e vôos adejantes de helicópteros. Tencionavam usar aquela Sibéria às avessas como um depósito de lixo atômico, degredo para inimigos políticos ou isolamento para criminosos irrecuperáveis? Vieram, registraram e nunca mais apareceram.
Pois ali, naquela axila do universo, moram três homens. O pai e dois filhos. Ninguém atina com o hediondo crime que os encurralou naquelas profundezas. Não se imagina o peso de remorso tão insuportável capaz de impor tal mortificação voluntária. Que crime seria capaz de suplantar em castigo o castigo legal? Que loucura tão sem comparação faria alguém enfrentar a natureza onde ela é mais terrível e rancorosa?
Nem crime nem loucura. Quem sabe, fuga ou medo? Estavam ali tentando salvar a própria alma após terem sido empurrados por um exército de cercas e arames farpados que sempre estavam nos seus calcanhares quando acordavam. Quando ali desceram as cercas pararam seu assédio, o censo riscou-os de sua lembrança, os patrões se esfumaçaram. Ali, só a brutalidade muda da natureza, o espesso silêncio das distâncias, a aridez do paraíso de Caim. E na solidão encontrada, o velho encontrou tempo para recensear os pecados e suas formas de expiação. Afinal, quem somos nós, dizia, senão pecadores? Que mais poderia Deus nos oferecer como paga do que temos feito? Os dois filhos nada respondiam.
O velho se aprofundava nos mistérios do apocalipse enquanto os filhos cuidavam da provisão. Quando vinham à cidade assistir à missa do galo, os filhos cuidavam de adquirir sal.
Naquela terra, onde os répteis se alimentavam do próprio rabo, viviam eles, descobrindo quistos de fertilidade microscópica sob pedras, raízes sumarentas sob a crosta seca, umidades insuspeitas em grotões; com os olhos rápidos da precisão localizavam preás sorrateiros sob a cabeleira desgrenhada das macambiras, e água invisível porejando num paredão de caverna.
Um dia o velho virou-se para os dois filhos e disse: - Hoje eu vou morrer. Quero água para lavar os pés e peço para vocês que me façam a última vontade. Quero ser enterrado em cemitério cristão. Depois disso, vocês tomem o destino que acharem mais conveniente. Antes de virar a página do apocalipse a mosca varejeira já rondava aquelas narinas estriadas de varizes.
Do ermo até a casa mais próxima era preciso um dia de penosa viagem vencendo aceros, cortes, descidas, lombadas, serpenteios, socavões, súbitas subidas, abismos e chã batida. Uma idiota topografia fazia o caminho rodopiar sobre si próprio sem se repetir; uma lógica inalcançável traçava aquela superfície de Moebius embriagada.
Providenciado o fornido pau que suportaria a rede para o último translado, os filhos constataram a dificuldade da tarefa que teriam de concluir; o castigo da última vontade do velho pai. Sozinhos não aportariam no cemitério nos prazos que a morte estipulava. Computando o cansaço, o caminho, a sede, a chaga nos ombros e as bolhas sob os pés, não usariam menos de dois dias. Os vermes não lhe dariam prazo tão dilatado. Caminhando à noite exporiam o velho ao faro sutil dos guaxinins, e eles próprios ao bote silencioso da suçuarana. Durante o dia seria penoso romper o nevoeiro espesso das moscas e não se desesperar ante a ronda aérea da esquadrilha de urubus.
Além do mais, o respeito cultivado durante tantos anos talvez não suportasse presenciar o velho desconjuntar-se, efervescente, esvaindo-se num rastro de lodo e pus pelo caminho, servindo de repasto à língua aquosa dos cachorros do mato.
Dois dias e meio depois os filhos concluíram a tarefa exigida. Sem reclamar, lavaram as chagas com cachaça, esperaram os calos se recomporem e rumaram para São Paulo antes da missa de sétimo dia.
Quase dois anos depois, a exigüidade do cemitério e uma escolha casual do coveiro acenderam um debate canônico naquela comunidade de leigos. Ao escolher aquela cova para sobrepor mais um cadáver, o coveiro deu de cara com o velho do Ermo quase intacto. O rosto um pouco mais seco, as órbitas vazias, mas completamente intacto.
Seria o velho um desses santos desapercebidos ante quem a sanha dos vermes se retrai respeitosa? Ou seria um perverso de quem o infalível tapuru guarda distância temerosa? O debate acendeu os ânimos, fendeu a comunidade em dois partidos, e só não deu origem a apostas porque todos sabiam que o veredicto sobre tal causa dificilmente contentaria a parte perdedora. O pêndulo dessa discussão oscilava entre canonização incontestada e a execrável e desabonadora excomunhão quando o coveiro, a quem coubera os últimos cuidados com o morto, cometeu a indiscrição delatora: o defunto que ele enterrara talvez jamais seria comido pelos vermes. Não por santidade ou por demasia de maldades. É que os pobres rapazes, querendo atender à última vontade do pai, haviam salgado e amarrado o velho de tal forma que a podridão demoraria tanto a chegar a ele como demoraria para consumir um fardo de charque.

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