2.11.08

CONTO

Amaro e Dulce



O amor de Dulce e Amaro era exemplar. Tão exemplar que parecia nem existir. Era a atração magnética dos nomes ou a aparente indiferença dos sólidos convívios? Sem procurarem respostas para tais perguntas, afastavam com arte os espinhos da vereda da convivência, aparavam as arestas dos mal entendidos, interceptavam as flechas frias da inveja em pleno vôo, pisavam na cabeça da serpente sibilante da maledicência.
Era assim que viviam Amaro e Dulce.
Desconheciam a extensão pública das carícias, da mesma forma que a submissão costumeira de um se curvando à grosseira autoridade do outro. Eram iguais.
Quando se olharam reconheceram-se porca e parafuso; casulo e crisálida; engrenagens.
Eles não tinham filhos, logo ali onde filho era a única posse que não distinguia ninguém. Mau olhado contra a harmonia ou um instante de amnésia do destino? Isto parece que os aproximava mais, apesar do zumbido sussurrado nas alcovas, dos risos enviesados nas calçadas ou das insinuações flutuantes no ar. Mas quem sabe os segredos da reclusão dos amores de cada qual? Quem sabe as formas, as preferências, a partitura dos gemidos, a postura da lassidão e do repouso, senão quem se deleita em tais intimidades? E quem pode discernir a vontade de Deus ou da natureza no cipoal de coisas e significados que estão por acontecer? Quem pretende agarrar com o saber os infinitos mistérios que correm por esses túneis sinuosos do corpo, onde convivem mistérios, coincidências e probabilidades?
O que é saber viver? Cultivar amor ou camaradagem no deserto da ignorância exige muito. Requer muitas maciezas, trejeitos, renúncia e simulação de cegueira. Então, um não via o disfarçado olhar do outro - inocência ou gula - passear, planando, sobre os contornos das mocinhas de aflorantes peitos e púbis rarefeito?
E o outro não via o mal disfarçado prazer de um ao abarcar com os olhos as protuberâncias incontidas dos rapazinhos de buço ralo e voz dissonante? E não deixavam a névoa embaciante da compreensão envolver essas fraquezas entrevistas?
O que é viver então? Trabalho, compreensão e alegria.
Ordenhar água limpa do úbere seco da natureza, entender que esse emaranhado de sangue, fibras, nervos e calafrios nos faz estranhos a nós mesmos, quanto mais a outros fora de nós! E trabalhar a alegria como uma argamassa, como uma sublime caliça nascida de algum lugar dentro de nós, como um vômito ou um pensamento, para colar os cacos da aridez das coisas, do estranhamento das pessoas e acalmar o redemoinho da existência.
Talvez pensando assim, construíram um lar de calmaria. Suor e sela noite e dia; rebanho e pasto, além de toda a lida decorrente: troca, transporte, abate, ferro e fogo: um. Fogo e arte, alecrim e manjericão nos acepipes; fartura e cheiro sobre a mesa; espermacete sobre o linho, vincos afiados com ternura: o outro.
A força e a destreza de um complementavam o delicado e o sutil do outro. E era assim porque para se viver, um só não pode tudo, há que dividir as lidas, os afazeres, tocando a cada um aquilo mais de acordo com o gosto ou a natureza, a aptidão e o desejo. O comum, o coletivo, fica sendo a alegria, o divertimento, os planos, cama e lençóis.
Os olhos de um seguiam o outro na dança dos currais: boi e brida, pata e laço. Músculos retesos dominando a desordenada brutalidade dos bovinos. Com que sincero gosto o outro elogiava a surpresa permanente da fartura trivial, o festim rotineiro da mesa bem disposta. E nisto a relação de ambos se perpetuava.
Não havia viagem sem presentes no retorno: calçados macios, tecidos finos e de motivos coloridos; perfumes, revistas de moda e decoração. Não havia retorno sem banquete, música e bela mesa. Fartura e guloseimas; forno e fogão.
Nas despedidas, um montado, armadura floreada em couro sobre couro, forte, rijo, domando a irrequieta pressa do alazão com punho firme; cabelo em cachos, batom, espora e brincos: Dulce. O outro do terraço, franzino e colorido, aspergindo adeuses, já impaciente, antevendo os presentes do retorno: Amaro.


(De Aquelas criaturas tão estranhas, Rio Fundo, 1995.)

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