9.10.08

CONTO

O CONCERTISTA E A CONCERTINA

Para Maria Valéria Rezende


O concerto não era um espetáculo, era uma despedida. O cenário era aquela rua longa e deserta, com um vento frio escoando entre as casas, removendo folhas secas e papéis, como se fantasmas varressem aquele anfiteatro onde, afastadas, algumas árvores espreitavam, gatos de pálpebras semicerradas cochilavam nas biqueiras, e o resto do universo - uma grande abóbada azul-escuro embebida de estrelas, invisíveis planetas e difusas nebulosas -, logo acima dos telhados, era testemunha indiferente do que acontecia aqui em baixo.
As casas eram antigas, altas, como se tivessem sido espremidas umas contra as outras por uma força desconhecida. Naquela noite, o relógio quase não andou e o frio da noite fez as pessoas deitarem cedo.
Apesar disso, mesmo sendo quieto o lugar e silenciosas as pessoas, o material de que é feita a vida borbulhava sem parar. Uma moça jovem deitou com o namorado na sala de sua casa enquanto sua mãe cochilava e seu pai olhava as estrelas no quintal; alguns maridos viraram de lado e dormiram, enquanto outros tentaram povoar o mundo como manda a lei; alguém roubou uma galinha depois da meia noite; mais adiante alguém parou de contar histórias de almas e lobisomens; um outro sentiu uma pontada no peito, um seu compadre teve disenteria; há quatro moças menstruadas, seis mulheres grávidas e dois ou três moleques se masturbando em suas redes; alguém faz um chá, um e outro tossem; um dorme sonhando com suas dívidas, outro não dorme pensando no que não recebe; um dorme por ter comido em demasia, muitos se ressentem da barriga vazia; uma acalenta e dá o peito, outro ronca, mas não dorme direito. Um bêbado flutua no sereno e os cachorros incomodam suas pulgas.
E por fim, uma nuvem úmida, perfumada e ondulante, vai se espalhando, ocupando a rua, preenchendo as casas, acariciando os ouvidos, acordando os dormentes, despertando os que cochilam e envolvendo os acordados. A moça jovem que deitou com o namorado sente o segundo tremor pelo seu corpo; sua mãe que cochilava desperta do torpor e seu pai continuou olhando as estrelas, mas agora sem prestar atenção a elas; os maridos que dormiam acordaram, e os que tentavam povoar o mundo, tentaram novamente; alguém abandonou a galinha que roubara depois da meia noite; aquele que contava histórias emudeceu; as pontadas no peito daquele desapareceram, estancou a disenteria de seu compadre; as quatro moças tiveram seu fluxo interrompido e a essa altura as seis mulheres grávidas já somam sete, enquanto os três moleques ainda se masturbam em suas redes; alguém fez e tomou um chá, um e outro pararam de tossir; um acorda e esquece suas dívidas, outro não dorme e esquece os créditos um momento; um dorme por ter comido em demasia, muitos se ressentem da barriga vazia; uma acalenta, dá o peito e ouve, outro para de roncar e escuta. Um bêbado continua flutuando no sereno e os cachorros deixam em paz as suas pulgas.
Era a música. O concerto. O concertista tocava a czarda de Monti que ninguém ali conhecia, a não ser ele, e que uma vez aprendida, em um lugar distante e como se fosse um segredo, dormia nas dobras da sua concertina, no interior do fole, como uma coisa sagrada. No primeiro acorde, o vento que andava célere, deu uma meia volta sobre as casas e retornou mais suave, como se quisesse ouvir a melodia que saía da concertina; o vento frio virou aragem, e a platéia – os homens, os bichos, as pedras, as árvores, os ares, os fantasmas e o infinito -, respirou com calma, dando lugar ao som que preenchia aquela parte da abóbada sobre o mundo.
E aquela imersão maravilhosa que todos sentiam vinha do jorro saído daquela caixa de artifícios, a pequena maleta de sons, uma concertina de oito baixos, de fole prateado, com suas fileiras de botões emparelhados como em uma cartela de comprimidos. Aquela caixa, sonora matéria de sonho e desejo do concertista, era como uma mulher amada. Fora descoberta por ele em uma vitrine de uma loja de ferramentas, recebida por conta de um débito insolvível, e desde então achou canto cativo no coração do enamorado concertista.
Quanto custa? Uma montanha de dias de trabalho, outra montanha de noites sem dormir, afora o ciúme de ser traído e abandonado, desprezado por outro de fortuna, fortuna que ele como artista não ousava possuir. Pecúlio? Nenhum! Que pode ter um artista solteiro, amante de saraus, bebida, certas diversões e nenhum emprego ou bem de família? Uma cama, um colchão de palha, uma mala e mais nada que possa se transformar em moeda sonante, a única música para o dono do armazém e atual dono da bela concertina? Por outro lado, que pode um artista sem o instrumento da sua arte, vivendo ao sabor dos instrumentos que a bondade alheia ou o coleguismo dos outros possa lhe proporcionar? E como sofre um artista com a asma dos foles resfolegantes e remendados que o desleixo de artistas menores não repara; é triste como o choro de um velho o som desafinado de muitos instrumentos que tem tocado, nada é pior que o ruído cavo que se cria quando se preme um botão e do instrumento só sai o bruto ar, o esgar do fole, como se aquela caixinha, delicada como uma criança, estivesse tísica.
E durante meses que duraram anos a pequena concertina ficou exposta aos olhares indiferentes da maioria e aos ávidos olhos do apaixonado concertista que toda semana lhe fazia uma visita. E numa delas, entrou na loja, foi até o balcão onde despachava o comerciante e lhe perguntou: Posso experimentar? Fazer um teste? Podia. Colocou-a no colo, abriu o fole lentamente, ela respirava como uma criança. Premiu os botões brancos, um a um, baixinho, ouvindo a afinação e gozando a sonoridade. Pediu resposta dos baixos, e ouviu aquele ronronar macio, acariciante e puro.
Sabe tocar? Sei. E por que não toca? Jurei só tocar em instrumento meu. E lhe veio a tentação de fazer um solo, uma improvisação de Pedacinho do céu ou de Escadaria, quebrando a jura, mas aquietou-se. Só toco em coisa minha. E quanto custa? E a resposta cavou um abismo entre ele e a concertina e lhe doeu como se fosse a recusa da mão da mulher amada. E é à vista? À vista é. E o concertista voltou para casa com o coração em pedaços e pensando coisa ruim. Comprar a prazo! Ele não vende. Roubar a concertina! Fazer de conta que ela era uma moça, sua noiva, e roubá-la, fugirem juntos como se noivos fossem. Depois, passados os alvoroços, enviaria emissários ao comerciante e proporia um trato, pagamento parcelado, já que com ela ele podia pagar as prestações. Impossível? Muitos casamentos foram feitos assim e ninguém morreu ou foi para a cadeia por isso.
A concertina anoiteceu e não amanheceu. Fugiu com o concertista para lugar incerto e não sabido. O comerciante esbravejou como um pai enganado e fez registro na polícia. Suspeito? Não sei quem foi, mas desconfio de um que vivia namorando minha concertina e não tinha dinheiro para comprar. E à raiva espumosa do comerciante se seguiram as diligências preguiçosas do delegado, e o mundo abriu-se e fechou-se, e nada de a concertina e o concertista aparecerem.
E como se fosse um furto de noiva, de verdade, numa tarde achegou-se manso e cauteloso um emissário ao balcão do comerciante. E embaixador que era, investido das astúcias que essa profissão exige, destilando a maciez da voz e repelindo a brusquidão do gesto, numa convincente dialética tentou mostrar ao comerciante que o que ele achava preto, na verdade, era branco, que o que estava dentro, na verdade estava fora, que o que parecia ser escuro, se bem olhasse, era a claridade; e tanto parlamentou que o interlocutor terminou aceitando uma conversa mais pé-no-chão, bem pé-de-ouvido, e perguntando: o que é que você quer? Sabendo ele que se tratava do desaparecimento, do roubo ou do rapto de sua concertina e que aquilo parecia ser a única maneira de tirar o prejuízo, tão importante quanto salvar a honra de uma filha.
Aceitas as desculpas do ato subversor - tresvario de um artista apaixonado e pobre -, seria retirada a queixa da polícia e estabelecido um trato com o seqüestrador enamorado: teria trinta dias para pagar a concertina, sem que faltasse um tostão sequer; caso o trato não vingasse e a honra do compromisso fosse manchada, ele ficaria preso, junto com a concertina, mas se ousasse tirar dela qualquer som, a bela concertina seria destruída. Poderia haver castigo maior? Não havendo como dizer não, foi selado o pacto e o concertista riu, primeiro, quando pensou na alegria de ter sua concertina para sempre, e chorou, depois, quando pensou no que teria de fazer para transformar esses trinta dias numa eternidade.
O concertista tocou na feira e lá lhe atiraram alguns trocados; tocou na missa e lá lhe deram uma parte da esmola das almas; tocou nos cabarés e as putas lhe mandaram parte da féria embrulhada como se fosse um charuto; tocou um batizado que lhe rendeu nada, quase; e não houve casamentos nestes dias; tocou no enterro de um morto, mas este era seu amigo e a amigo não se cobram certos favores. E mais não tocou porque não havia onde, e contando o pecúlio sentiu um calafrio.
Vendeu, então, a cama, o colchão e os lençóis, vendeu a mala e um par de sapatos; empenhou um escapulário e uma parelha de roupas. E contabilizou metade e mais um tanto daquilo que devia pelo trato. Pensou em vender seu suor, mas não achou quem dele se engraçasse. Quis vender a roupa do corpo, mas seria preso pela lei. Só se vendesse a sua alma, mas aqui ninguém compra almas, muito menos a de artistas como ele, que tem pouco peso e pouquíssimas virtudes. Apelou para o jogo do bicho, mas a sorte surrupiou alguns trocados do seu incompleto patrimônio. E lhe restaram os suores frios, o desespero galopante e um impiedoso calendário a lhe mastigar o tempo que restava.
E porque o calendário engoliu o tempo com voraz apetite, chegou aquele dia, ou melhor, aquela noite, antecedente do fatídico dia em que o concertista cumpriria seu trato e arrebataria de vez a sua concertina. E era por isso que no meio da rua, sentado em um tamborete, com a concertina ao colo, o concertista se preparava para a despedida. Nunca mais tocaria sua concertina e, já que não poderia mais tocá-la, nunca mais tocaria concertina alguma. O dinheiro estava incompleto, numa sacola, aos seus pés. E no seu colo a concertina, de onde saía czardas, a música que aprendera em segredo e que o fazia flutuar.
No início da música os sonhos se recolheram, os roncos silenciaram, as luzes se acenderam, as cortinas se afastaram, as portas de abriram, e homens mulheres e crianças, meio sonâmbulos e sorridentes, caminharam para o meio da rua onde um concerto reunia a concertina e o concertista. Só a luz da casa do comerciante ainda dormia.
Os moradores, como se agissem de forma combinada, depositavam, um a um, suas últimas moedas na sacola do concertista, enquanto a luz da casa do comerciante acorda. O concertista gela e a platéia volta-se para a luz. Alguém pega o saco e conta as moedas. O comerciante abre a porta e sai à rua. Aproxima-se da pequena platéia. Alguém lhe estende a sacola. O comerciante pega a sacola e lentamente conta o dinheiro.
– Falta uma moeda! Diz.
– Estes são os últimos tostões de todos. Nem mais a caixa das almas tem.
O comerciante devolve a sacola. Quer a concertina. Quando o concertista começa a retirar os suspensórios do instrumento, o bêbado levanta, tira uma moeda do bolso, coloca dentro da sacola e lhe diz
– Toque mais uma!
Quando o dia amanhece, o vento frio acaricia o concertista que dorme sob uma marquise, agarrado à sua concertina. Ao seu lado, o bêbado continua flutuando no sereno e os cachorros não deixam em paz as suas pulgas.



(do livro O Concertista e a Concertina - Editora Manufatura, 2005)

Um comentário:

Betomenezes disse...

Belíssimo texto. Bem encorpado.

Abraço Barreto. Saudade da galera toda do clube do conto.

Roberto Menezes (betomenezes)

www.betomenezes.blogspot.com