17.10.08

CONTO


UM ESCRITOR



UM ESCRITOR AMIGO MEU acaba de lançar um livro. É um livro original, tão diferente e revolucionário que ele não sabe como classificá-lo. A síntese perfeita entre o signo e seu oposto, entre a palavra e o silêncio. Um livro revolucionário. No lançamento havia oito pessoas. O namorado do autor, dois amigos ligados às letras profundas e radicais, uma tia idosa que o sustenta, uma irmã, um amigo do namorado, um transeunte e eu. Oito. Ele completava os nove e estava feliz.
Um dos amigos das letras radicais disse algumas palavras, durante uma hora, e eu tive que falar do livro, relembrar algumas passagens da nossa adolescência, quando estudamos juntos, de nossa amizade e afinidades literárias. A tia chorou uns quatro lenços de cambraia, a irmã somente três; o namorado, um pouco afastado, olhava embevecido e tímido para o maior escritor do mundo. São assim os lançamentos. Afinal é a coroação de dias e noites, noites e dias de suor e labuta, de labuta e suor, com pequenos intervalos para uma olhada no espelho e busca de inspiração.
Ele demorou exatos dez anos para construir sua obra. Dez anos. Noites de labuta e canseira. De insônia e labuta. Pelo menos foi o que ele afirmou na hora dos agradecimentos. Dois anos de hipérboles, metáforas, paráfrases e aliterações; não sei quantos mais de reestruturação, reescritura e acréscimos; e o restante de condensação.
Ao fim do segundo ano tinha 510 páginas escritas, 251.620 palavras, 1.647.760 caracteres com espaço, 3920 parágrafos e 22.570 linhas. Um castelo de palavras, produto da primeira fase, a de aglutinação.
Os dois últimos anos ele os gastou polindo, cortando, buscando a essência. Quando fez uma primeira leitura, retirou os erros mais grosseiros, as repetições, por si mesmas desnecessárias, e os parágrafos obscuros, economizou 56 páginas; na segunda leitura, cuidou de retirar o excesso de adjetivos - os manuais falam dos tais adjetivos e de seus malefícios para o estilo -, e lá se foram 32 páginas; com o excesso de quês implicantes e repetitivos cortou 16 páginas. Ao fim dessa primeira passada, estava com 407 páginas e uma ligeira impressão de que seu romance tinha tudo para ser uma grande obra.
Na terceira leitura, notou que ainda havia muita gordura, muita coisa que não contribuía para a solidez da obra e resolveu cortar. Aplicaria algo que leu de um determinado crítico de literatura que dizia: se você notar que retirando um capítulo ou parágrafo ele não faz falta, corte. É porque realmente ele não serve para nada. Começou com os capítulos. Dos trinta e oito, cortou quatorze. Os vinte e quatro restantes, após a poda dos parágrafos mal ajambrados, obscuros, desnecessários ou ilegíveis redundaram em 231 páginas.
Semanas depois, uma leitura sobre Graciliano e sua febre pela concisão, somada com outra sobre a poesia de João Cabral, fez com que devastasse dez capítulos, que refundidos resultaram em oito e 126 páginas. Dessas 126 páginas, retirou todos os personagens, deixando só o principal e com isso seu texto ficou reduzido a 45 páginas. Podando as páginas onde havia algum tipo de ação do personagem, restaram-lhe 19 páginas. Com um texto tão condensado, não havia necessidade de divisão em capítulos, o que economizou três páginas.
Na última leitura, resolveu deixar somente os monólogos interiores que tivessem relação direta com o suicídio – tema do livro -, o que lhe custou sete páginas. Cortou, depois, oito delas por não terem um cunho filosófico mais profundo e se viu frente a frente com meia página altamente condensada, profundamente densa.
Mas, pensando bem, nada seria mais profundo do que o ato do seu personagem. E trocou aquele parágrafo profundo por esta frase banal, mas tão representativa: Ele iria se matar. E tal concisão levou-o à idéia genial: A morte é o absoluto. O que é uma frase para representá-la? E riscou a frase dando origem àquela sua obra de tantos anos. Pelo menos foi o que ele disse na hora dos agradecimentos.
A crítica não tomou conhecimento. Os resenhistas passaram ao largo, e as más línguas acharam outras coisas de que ocupar.
Vendeu oito exemplares no lançamento, embriagou-se e começou a se preparar para escrever o próximo.


Geraldo Maciel



(Do livro de contos inédito Os Colecionadores)

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