29.3.09

PECCATA MUNDI


CAPÍTULO 2





O vigário Carrão sempre acalentou a idéia de um dia tornar-se cardeal. Atraía-o a pompa e circunstância do cargo, a aura de poder daqueles príncipes da igreja, sempre gordos, rotundos, elegantes; pesava também na sua admiração a boa vida que deveriam levar, o pouco trabalho que deveria dar ser um cardeal, principalmente se morasse no Vaticano, sem contar a influência e o prestígio que tais figuras sempre exercem e gozam.
Na verdade, ainda em Portugal, ele primeiro sonhou ser um marquês, senhor de muitas terras, um fidalgo das cortes, coisa impossível para um filho de camponês como ele. Depois pensou ser burguês, banqueiro, mas nunca teve tostão algum para começar aquela atividade progressista. Foi quando seu pai o obrigou a seguir a carreira religiosa, único jeito de ser alguma coisa sem ter de gastar o dinheiro que o pai não tinha. Assim, o jovem Leocádio foi lavar latrinas no seminário, lá começou a estudar, e iniciou sua carreira em direção ao cardinalato.
Ainda como lavador de latrinas no seminário, descobriu que sua vocação religiosa, sem desprezar a fé nos dogmas, incluía a posse de terras, o desejo de ouvir o barulho mavioso e doce de moedas sonantes, e uma grande sensação de impunidade por pertencer à Santa Madre Igreja. Para ele, na verdade, este sentimento de impunidade era traduzido por uma profunda confiança na bondade divina, no perdão dos pecados, mesmo os mais cabeludos, através do sacramento da confissão. Confissão tanto mais eficaz, quanto mais direta, sem intermediários, como acontecia com as que ele fazia ao próprio Deus. Aos seus confrades ele declarava somente o trivial variado.
Quando foi ordenado padre, essa sua nova posição eclesiástica não foi suficiente para retirá-lo da senda que levava a costumes não de todo recomendáveis a pastores da igreja. Assim, foi sonhando com as riquezas do novo mundo, com a catequese no meio dos índios e com sua futura liderança da igreja, que o padre Leocádio Carrão Brindeiro veio aportar por estas terras.
Ainda em Portugal, o jovem Carrão, em função de sua pouca idade, quando a carne esquenta e o sangue ferve, andou cometendo pequenos delitos e pecados carnais que obrigaram seus superiores a vigiá-lo mais de perto. O certo é que com tão pouco tempo de ordenamento o jovem padre era obrigado a se confessar quase todos os dias e a fazer penitências e sacrifícios que, se serviram para lhe apagar os pecados anteriormente cometidos, pouco adiantaram no que diz respeito à prevenção dos que estavam por acontecer.
De pecadilho em pecadilho, de deslize em deslize, de esbórnia em esbórnia, o destino terminou fazendo o jovem padre aportar aqui, nessa Filipéia de Nossa Senhora das Neves, numa espécie de degredo religioso, castigo que ele terminou aceitando como dádiva.
É certo que aqui ele via enterradas suas pretensões de rápida ascensão na carreira eclesiástica, coisa que ele já não desejava com o mesmo entusiasmo, se bem que mesmo com essa desistência consciente, nada o impedia de continuar sonhando com as vestes púrpuras dos velhos cardeais, de se ver abençoando a multidão nas cerimônias no pátio da igreja de São Pedro ou de numa mão ter as chaves do céu e na outra as chaves do cofre do Vaticano. No dia-a-dia, quando a bruma dos sonhos se esvaía por completo, ele voltava a ser tentado pelo chamamento da carne, esse sim, bem real.
Os problemas do padre Carrão eram as tentações que o afligiam, aqueles desejos e sensações que a Igreja condenava, como os sete pecados capitais, por exemplo, dos quais ele tinha uma enorme dificuldade de fugir.
Uma das suas maiores fraquezas era a mesa. Foi assim desde criança, quando nada parecia satisfazer sua fome e, muitas vezes, fazia incursões furtivas às reservas alimentares que porventura sua mãe escondesse para as ocasiões de aperto. Agora adulto, atacava leitões, capões, franguinhos e perus com a mesma determinação com que os cruzados atacavam os mouros e as despensas pagãs.
Que culpa tinha ele de o vinho ter esse sabor de néctar, ser tão suave e aveludado a ponto de lhe provocar aquela sensação de flutuação que devem sentir os anjos nos seus vôos sobre o paraíso? O que o perdia completamente eram aquelas farofas fenomenais, os guisados indescritíveis, as costeletas douradas, os assados sem comparação, feitos de propósito para dar água na boca. E o que dizer dos molhos pardos, dos criminosos molhos de cabidela que a negra da cozinha fazia como ninguém? E o que na terra se compara a essa ligeira vertigem que se sente quando de pança cheia, bucho sangrando, vem a vontade de se deixar cair em uma rede macia num recanto silencioso e ventilado?
Era, então, nesses preciosos momentos que lhe vinham os maus sonhos – batalhões de belzebus vestidos e encapuzados como os padres da Santa Inquisição – atrapalhando o sono tranqüilo que coroaria aquela sua principesca refeição.
Depois que se iam esses sonhos maus, começava a metralha de flatos e roncos que, de tão altos e constantes, confirmavam para toda a vizinhança que Sua Reverendíssima, o vigário Carrão, fazia a sua sesta.
O vigário comia muito, dormia com fartura, mas não esbanjava os recursos escassos que Deus espalhou pelo mundo e tanto trabalho dão para se conseguir. Seus escravos, além dos agregados livres e serviçais que viviam às suas expensas, comiam cada um a sua ração de feijão e batatas, sem contar com os normais surrupios do que sobrava à mesa que a negra da cozinha não deixava de fazer.
O vigário Carrão tinha especial predileção pelas moedas de ouro. Tratava todas e cada moeda de seu cofre como se fosse a última moeda da face da terra e era mais fácil ver o joelho da madre superiora do que um reflexo, mesmo pálido, de uma das inúmeras peças de seu tesouro.
E se padecia do pecado da inveja, este se restringia ao tesouro do Vaticano, ao tesouro da Coroa portuguesa e ao que deveria ter acumulado o governador da província. Claro que invejava a boa vida, o prestígio e o dolce far niente que imaginava ter o bispo, seu superior; e quando via o governador da província no seu luxuoso cabriolet não deixava de enumerar todos os defeitos que lhe eram atribuídos, relembrar todos os pecados que lhe havia confessado e todas as falcatruas que fizera para chegar a tão alto posto; também, verdade seja dita, não poder ir, livremente, como todos os homens de bem da província, ao prostíbulo e lá tomar dos melhores vinhos e gozar da companhia das mais belas mulheres, era uma coisa que sinceramente, invejava.
Mas nenhum daqueles empertigados senhores, embalsamados nas suas casacas e envoltos na sua prepotência, possuía a fortuna que ele possuía. Era o homem mais rico da província. Podia segurar algumas barras de ouro em sua mão como se fossem rapaduras e tomava vinhos caros – às escondidas, é verdade -, mas tomava; e se não era uma alta autoridade da igreja, - e aí ninguém o superaria em vestes brilhantes e em prepotência – superava a todos em bens e escravos, com a vantagem.
No dia-a-dia era um homem afável, até educado, desde que o interlocutor fosse de determinada posição social ou, quando não fosse o caso, pudesse lhe trazer algum benefício, ou, para ser mais explícito, lucro. Só perdia a compostura e se zangava, atingindo a raias da ira, pecado que mais tarde e prontamente ele confessava e apagava com penitência, quando lhe quebravam alguma vasilha na cozinha, lhe passavam a perna em algum negócio, coisa muito rara, ou quando imaginava que o sacristão andava a beber os vinhos da adega da paróquia que, por serem caros, não podiam ser desperdiçados por quem não tinha as investiduras sacerdotais.
Apesar do que diziam as más línguas, o padre Carrão era um vigário diligente. Quando se tratava de fazer os balancetes de suas fazendas, calcular os juros dos empréstimos ou negociar partidas de açúcar, escravos, rapadura ou cachaça, não havia quem lhe chegasse aos pés. Transformava-se num adolescente transbordante de energia. Seus olhos brilhavam como brilham os olhos dos jovens enamorados.
Nas negociações que envolviam dinheiro, era imbatível. Ninguém melhor que ele para realçar as qualidades do que era seu, e rebaixar, sem ferir os brios do outro – e aí estava seu segredo –, as qualidades dos produtos do oponente. Nesses momentos era possuído de uma força estranha que fazia com que considerasse meia rapadura como se fosse um lingote de ouro ou uma partida de escravos, e dez réis como se fosse todo o tesouro do Vaticano.
As únicas coisas para as quais, às vezes, lhe faltavam energia e vontade eram os casamentos e batizados – sempre numa quantidade que excedia o tempo disponível, principalmente quando eram desses que a obrigação sacerdotal manda que sejam feitos gratuitamente e dos quais não vem nada para os cofres da igreja.
Não era preguiçoso, como diziam alguns de seus detratores ou invejosos de sua boa sina, era o cansaço por ter tantas atividades e o dia ter somente vinte e quatro horas. Tanto não era preguiça que rezava quase todas as missas que lhe impunha a obrigação de vigário, sempre às quartas e domingos, sem sermões muito demorados, é verdade, pois os senhores da província já os conheciam de cor, e os pobres diabos, que nem sabiam ler nem escrever, com certeza não os compreenderiam.
O vigário orava e se penitenciava como ninguém, justiça lhe seja feita. Principalmente quando no ardor de um negócio, tinha que lançar mão de certos expedientes para garantir seu lucro. Alguns impostos que eram esquecidos, certas partidas de mercadorias que não entravam na contabilidade; presentes que dava em troca da boa vontade de certos coletores de impostos ou da presteza com que foi atendido por este ou aquele membro do governo. Aí não contabilizava certos afagos que fazia ao chefe da força pública quando tinha necessidade da proteção para certos negócios que sua atividade exigia.
Também muito se mortificava quando os encantos de uma dama o faziam escorregar dos leitos matrimoniais – afinal eram três – ou quando uma escrava jovem o atraía com a força com que um imã atrai o ferro. Seu único refrigério era a penitência e a certeza de que nascera assim e nada podia fazer. O que podia ele, pobre homem mortal, pura carne pecadora, fazer contra os desígnios da natureza a não ser rezar e se penitenciar?
Afora isto, vez por outra, a fraqueza lhe impunha dois ou três pecados mortais que, não fosse a enorme força da absolvição, seriam suficientes para queimá-lo no fogo do inferno por toda a eternidade. Talvez fosse por esses que, sem nenhuma razão aparente, a não ser aquela que dorme no mais escondido desvão de escada da nossa consciência, o vigário Carrão sonhava com a Santa Inquisição.

3 comentários:

Francisco Dantas disse...

Belo texto, Geraldo. O pe. Carrão (que nome?)devia ser sobrinho querido daquele bispo do Auto da Compadecida. Mas seu texto é sério, por retratar, com oportuno amor, a "farta" vida de bispos, padres e monges, que, desde o primitivismo eclesiástico, se locupleta nos "condenáveeis" pecados da luxúria e da avareza Vade retro. Grande abraço.

Anônimo disse...

Geraldo, retorno para uma "errata": não é oportuno amor,MAS: OPORTUNO HUMOR; não é se lupleta, MAS: SE LOCUPLETAM nos CONDENÁVEIS. É só.

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