29.3.09

UMA HISTÓRIA DO CONTO

PARTE 10

Guillermo Cabrera Infante

Horacio Quiroga é o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos, quá, quá, quá) e um louco perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num acidente de caça (caçava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois países reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai pode ser uma desgraça, mas perder um padrasto me parece um descuido.
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juízes qualificaram de acidente. Quiroga se casou, e, não muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mulher a passá-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso dizê-lo, foi a vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio.
Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque parece uma violenta telenovela e é mais interessante que sua ficção - que não é menos violenta. Um de seus livros de contos se chama A Galinha Degolada. No conto que dá título e tom ao volume, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma linda irmãzinha. Mas os dois irmãos vêem - ou melhor, observam - a madre degolar uma galinha para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha.
Li os contos de Quiroga, todos, na adolescência e acreditei em todos. Eu era, como vocês já devem ter deduzido, mentalmente são, mas impressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem com a expulsão deste encontro, eu não os leria nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido também que Horacio Quiroga era dependente não só de morfina mas da literatura de Poe.
Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabeça bem no lugar, é Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis Borges só porque eram amigos e colaboravam em empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos, Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez mais individual e distinto, não apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a mais comovente história de amor da literatura em espanhol do século 20. Chama-se A Invenção de Morel e, embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou conto longo e, para mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho francês "cherchez la femme".
Agora uma breve interpolação para falar, brevemente, embora ele mereça ensaios e tratados, desse grande autor: um americano que não escreve em espanhol e que não segue a tradição de sua língua, porque está criando as duas. Refiro-me a Machado de Assis, o único grande romancista sul-americano do século 19, que é também um contista extraordinário: sempre original, sempre na vanguarda de um homem só. Leiam, como aperitivo para o festim de um Trimalcião literário, seu conto "O Alienista".
O uruguaio Felisberto Hernández era o oposto físico do cubano Virgilio Piñera. Não gostava de homens magros, como Virgilio, mas de mulheres, muitas, gordas e caras: casou-se quatro vezes. Ao contrário de Virgilio, que nunca foi musical, Felisberto (podemos chamá-lo Felisberto: ninguém se chama assim) era um músico profissional, que, curiosamente, trabalhava como pianista de teatro, mas não de palco, e sim no fosso, e não para acompanhar sopranos, mas fazendo música de fundo para filmes mudos.
Suas vidas opostas tiveram um final parecido, mas diferente. Virgilio morreu reconhecido como pederasta passivo, com passagens pela prisão, condenado por invertido. Sua morte foi chorada por poetas pederastas, mas seu cadáver desapareceu do velório: as autoridades estavam convencidas de que seu corpo presente recriaria o ausente com fins políticos. Felisberto morreu de leucemia muito mais jovem que Virgilio, mas seu corpo inchou tanto que foi preciso procurar às pressas um caixão adequado, uma coisa tão enorme que não pôde ser tirada pela porta da funerária e saiu para a eternidade por uma janela.
Há um provérbio latino que propõe que se chega ao final da vida conforme se viveu. Os respectivos finais de Virgilio Piñera e Felisberto Hernández foram, se não vidas, mortes paralelas. Acho que não por acaso a editora americana que publicou os Contos Frios de Piñera agora publique os contos completos de Hernández. Mas vale notar e anotar uma diferença notável: Felisberto estava meio louco, Virgilio, ao contrário, sempre teve a cabeça bem assentada na guilhotina. Precisava apenas de uma revolução, e a teve.
Juan Rulfo chamou Guimarães Rosa de "o maior autor surgido nas Américas neste século". Não se deve exagerar, mas Guimarães Rosa, que escreveu o melhor romance do chamado "realismo mágico", é um grande escritor. Para deleite de vocês (já que sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas é longa, complexa e metafísica), ele tem um volume de contos, mais zen do que sensacionais, intitulado Primeiras Estórias, que em espanhol ganhou o sugestivo título de um de seus textos, "A Terceira Margem do Rio". Há outros compatriotas de Machado de Assis que vale a pena citar, ainda que rapidamente. Murilo Rubião, com seu conto "O Ex-Mágico da Taberna Minhota", que é "sui generis", como são os contos de João Ubaldo Ribeiro, sobretudo seu "Foi um Dia Diferente o da Matança do Porco" e o elusivo e alusivo Rubem Fonseca, que com seu “Corações Solitários" criou um escândalo internacional ao ser proibido pelas autoridades de seu país.
O escândalo chegou aos ouvidos do presidente Carter, mais conhecido como "el manisero", não por causa da saborosa rumba havanesa, mas por ter enriquecido cultivando amendoim. Há outra rumba chamada "Tanta Lipidia por un Medio de Maní" cujo título me leva a explicar aqui meu interesse e até meu afeto pelos cariocas do conto. Não há outro país na América que se pareça tanto com a minúscula Cuba como o gigantesco Brasil: ambos têm sua musicalidade na música e na língua, ambos são uma mistura de brancos ibéricos e negros africanos, ambos criaram uma nova religião, que no Brasil se chama macumba e, em Cuba, "santeria".
Todos acreditamos que o ritmo não está só na música mas na fala, nos movimentos do corpo e nesse balanço que em Havana se chama "el caminao". Este meu ensaio, por exemplo, foi escrito como falam em Havana os "hablaneros".

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