4.8.08

CONTO


Um salto para bem longe


Para João Batista de Brito

Havia o bode alpinista e o menino, seu coajudante. O menino, flutuando no mundo, sonhava com papagaios coloridos e pirulitos rasga-bocas. O bode, com uma inquieta alegria nas patas, exibia um enorme par de testículos sobressalentes. De comum, ambos tinham a inocência e uma submersa tristeza nos olhos.
O palco era o Fênix, um circo de panos apodrecidos, carcaça de glória do Fênix de mastros eretos e bandeirolas coloridas. Isto podia ser visto pelos restos do antigo pássaro que ornava o frontão de entrada, onde ainda se podia distinguir o contorno da majestosa envergadura e um ou outro desbotado tom do antigo colorido sob descuidadas demãos de reparo que mais os escondiam que os realçavam. Um palimpsesto da antiga condição.
Na verdade, o Fênix era um circo muito mais por necessidade e brio do que pela tortuosa espinha do mastro, a frágil paliçada de estacas ou a pele rota dos panos, esgarçada e transparente, já nem um biombo separando aquela arte e a vida lá fora. O picadeiro era uma redoma circular de pouco raio, e o palco um retângulo sem consistência de medidas.
Perambulava por povoados cada vez menores após haver se desgarrado da órbita de cidades maiores e ser colhido pela força irresistível da pobreza do interior, das pequenas cidades, vilas e povoados como aquele onde agora estava.
O bode e o menino, adolescentes, quase crianças, não trabalhavam na armação. Os adultos cavavam os buracos, esticavam os arames, estendiam os poucos panos.
O repertório do espetáculo era mínimo. Ia diminuindo com o tempo, por morte do artista titular, desistência de um ou outro ou contenção de despesa. O que sobrava era um pequeno número de entretenimentos que, de tão repetidos, já não tinham brilho, viço ou novidade.
O elenco era reduzido. Havia o bode e o menino. Havia Hércules, de quem a idade e a vida nas barracas chuparam os recheios musculares. Sua força se reduzira, e rasgar pratos de alumínio exigia agora um pequeno talho invisível na borda dos pratos de folhas mais delgadas, para o que contava com o desleixo ganancioso dos fabricantes. Hércules fazia ainda as vezes de porteiro e ajudante de picadeiro, e sua mulher, recém chegada àquele mundo, ajudava na bilheteria. Nos espetáculos, ela tentava ajudar na coreografia dos números de canto e dança. O macaco, senil, já não trabalhava. Limitava-se a catar pulgas e cochilar ao pé do mastro, o que não deixava de ser uma atração.
Havia Bengalinha, o palhaço, já velho, cansado da itinerância, dos palcos quase sempre vazios, de ter que ceder seu espaço para cantores lamurientos e sucessos de gosto duvidoso. A chama de palhaço e o carisma humorístico quase não existiam mais, só aparecendo vez ou outra, deixando sempre nele a impressão de que aquela fora a última vez, o último espetáculo. Mas ele sempre continuava. Com chuva ou noite estrelada, repetia os números, as piadas, já nem ouvindo a reação do público. Reagia como um funcionário público.
A cantora gorducha, com sua voz engordurada e seu sinal na coxa, deliciava o público masculino. Fazia sucesso, fosse qualquer o número que cantasse, estivesse rouca ou fora do compasso. Seu sucesso dependia mais das insinuações e da generosidade da abertura da saia do que de sua atuação cantante.
Os trapezistas tinham nome, renome até, segundo diziam. Já haviam voado sob os toldos coloridos do Grande Circo de Moscou, do Ringling Circo e do Gran Circo d’Itália. Apesar do estado atual de ambos, ainda ostentavam o nome de irmãos Taviani, um resquício da antiga glória, ainda conservado pela necessidade da aura que os nomes estrangeiros dão aos artistas. Era o elenco.
Após vários meses nas outras praças, quase sem conseguir atrair nenhum espectador, o circo Fênix conseguiu chegar ali no socavão da serra, até pouco tempo nem tendo estrada carroçável, e aonde nunca tinha ido um circo.
Na tarde da estréia, após ter baixado a poeira da novidade e terminado o trabalho de armação, o bode viu sair Bengalinha com seu séqüito de moleques anunciando o espetáculo maravilhoso. E quando o palhaço anunciou, à poeira e ao cochilo daqueles moradores, o espetáculo fantástico, alguma coisa de anormal aconteceu. Nuvens acumularam-se a leste, e do sudeste correu uma brisa fresca como há tempos não se via. Pessoas lavaram os rostos nas gamelas, e as crianças inquietaram-se como se fosse tempo de ir para a escola. À noite, quase houve tumulto em frente à boquinha de meia-lua da bilheteria. O circo lotou.
Queriam ver os trapezistas bêbados, os afilhados do vácuo, os inimigos da gravidade? Ou queriam ver somente o bailado no ar, o contorcer quase gracioso da cantora gorducha, coisas que as mulheres do lugar não sabiam fazer e nem os cipós da capoeira conseguiam imitar? As crianças, com certeza, esperavam por Bengalinha e seus cansados números, para elas ainda novidade.
As pessoas, por ouvir dizer, sabiam das maravilhas que no circo se faziam e queriam ver aqueles prodígios que a propaganda retumbante do megafone de lata anunciou pelas três ruas do povoado: o nunca visto salto triplo, mortal, sem rede, com os artistas de olhos vendados.
As maravilhas que a propaganda opera nos negócios! Ninguém imaginou ser impossível voar sem venda e sem rede, num salto triplo mortal, principalmente sendo os dois os irmãos Taviani. Afinal, aqueles dois trapezistas, mesmo um tanto debilitados e maduros, eram ainda os maiores. Tanto que há vinte anos se ouvia falar neles e, ali no socavão, foram embalsamados pela fama. E agora eles estavam ali! Por este motivo, o Fênix conseguiu lotar o semicírculo das arquibancadas e a dúzia de cadeiras à frente do picadeiro.
O elenco tomou um susto com platéia tão numerosa. Nestes tempos duros, a renda dos espetáculos mal dava para alimentar o elenco com uma refeição diária, e o translado de uma praça a outra era muitas vezes objeto da benevolência alheia, despertada pelos dotes físicos da cantora ou pelo medo de que o circo tirasse de circulação o pouco dinheiro que ainda girasse no local. Uma platéia abarrotada nesse tempo era coisa rara. Bengalinha voltou a sentir os calafrios das estréias.
Um Taviani, o mor trapezista, sentado a um canto, chamou o menino:
- Você foi ao mato dar comida ao bode? Ele tem de encher a barriga senão fica nervoso e não consegue fazer nada. E veja só como está a platéia hoje!
O menino já havia feito sua tarefa. O bode, a um canto, ruminava. Sua barbicha professoral tremia: mastigava o hábito. Os dois não tinham segredos.
- Será que nos outros dias também vai dar gente? Era a pergunta do menino.
- Vai. A praça é boa. Gente simples, sem diversão. Praça pra uma semana.
A resposta parecia pedir uma confirmação. O menino e o bode sentiam alguma coisa, um pressentimento, parente da premonição. Era algo mais que a emoção da estréia, mais que a novidade do circo lotado, coisa além do nervosismo do primeiro espetáculo, algo pesado e desconhecido, medo sem fundamento, surpresa que ainda não deu o bote.
O público murmura, coletivo, quando o pano abre e o mestre de cerimônias inicia a função: “Senhoras e senhores, distinto público, o Grã Circo Fênix tem a honra de apresentar...”, e inicia-se o espetáculo. O toldo da cobertura era o céu estrelado onde a Ursa Maior passeava sem pressa. E vem o malabarista, o equilibrista, o palhaço, o bode e seu domador, a cantora, todos recebidos pelos aplausos ardorosos da platéia. Por fim, anunciam os trapezistas. O público os recebe em silêncio, como se fossem monstros sagrados ou dois condenados à execução.
Os números se sucedem até que os Taviani sobem ao trapézio e começam a fazer algumas manobras. Esquentam os músculos e domam o medo, que é parceiro e padrinho de todos os trapezistas.
Não rufam os tambores. Rangem as juntas das cadeiras do palco, estalam as tábuas da arquibancada. Iniciam-se as manobras: vôos no vácuo, mãos e pulsos, garras suadas segurando a probabilidade com a força dos náufragos. Os Taviani estão perfeitos. Felizes. As palmas lhes dão de volta a glória que pensavam estar aposentada, a lembrança dos toldos coloridos sobre a cabeça, a vontade de ousar, como só ousam os jovens artistas.
O público delira e pede mais. Os irmãos Taviani excedem as possibilidades de um trapézio tão curto, de um espaço tão pequeno, de uma impulsão limitada. A ausência de rede não permite mais que aquilo. O público não sabe o que é rede, nem conhece o medo dos artistas: pede o salto mortal. Por trás dos panos, os outros artistas gelam.
Os Taviani parados, em pé sobre as plataformas, olham-se como gladiadores irmãos. Abaixo deles, as coisas são tão pequenininhas! Só chegam os gritos, as palmas. Não vêem os olhos esbugalhados e ansiosos, os acenos desesperados de Bengalinha que lhes grita:
- Não! Sem rede, não!
Quem ouve Bengalinha? Sua voz já é fraca e sem convicção, e aqueles outros são bem mais numerosos e gritam, aplaudem como há tempos não ouvia um Taviani.
Eles sabem que numa qualquer noite, nessa noite, a corda pode se romper, e um deles irá flutuar numa bolha de medo e morrer? Sabem que todo vôo é como se fosse o último vôo? Que, se dali se desgarrarem, serão ejetados em direção às estrelas, onde não há público, e todo espaço é um trapézio de onde nunca se cai porque tudo nele é uma queda sem fim? Ou tudo é bem mais simples, é somente o sangue em corredeiras, o suor nas mãos geladas, o medo e a coragem abraçados, só? É por isso que rezam antes do salto?
Resguardados em um canto, o menino e o bode ouvem os urros da platéia e olham para o céu. Acompanham fiapinhos de nuvens deslizando no azul escuro enquanto estrelas juntam-se à tristeza no fundo de seus olhos. E ouvem os gritos do elenco tentando impedir o salto dos irmãos. O menino agarra-se ao bode compreendendo que aquilo era grande e perigoso. Os adultos haviam enlouquecido ou se embriagado. Tinha medo de ficar sozinho, perdido naquela barraca armada no meio do mundo, ele e seu amigo.
De repente, os trapezistas fazem um gesto que cala a platéia e o elenco. Todos silenciam como se presenciassem o inevitável: os irmãos se olham mais uma vez e começam a balançar no seu elemento como se aquilo uma flutuação fosse. Preparam o salto mortal.
O menino tremia e olhava as estrelas, procurando ver um dos Taviani já boiando no vácuo sem fim. O bode, lá do seu canto, irraciocinava.

Geraldo Maciel

De Inventário de Pequenas Paixões, Editora Manufatura, 2,000.

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