27.8.08

CONTO



A doce rapadura da vingança




Quem pensaria que numa tarde como aquela, sem graça e sem mistério, com a luz do sol filtrada por nuvens no poente e alguns cachorros passeando na pracinha, iria acontecer o encontro de Aprígio Justo e Antunino?
Não era pra acontecer, porque nenhum dos dois fez por onde o fato ali desembocasse, mas aconteceu durante algumas horas em que um desejou lamber um sorvete de morango, e o outro não achou quem lhe comprasse um remédio na farmácia. Também porque, devido aos quinze anos em que tal fato vinha sendo construído, muitos até esperavam que este encontro jamais acontecesse ou, se tivesse de acontecer, decerto não seria assim tão improvisado pela surpresa.
Remontando-se o acontecido e o que fizeram os dois naquelas bobas horas, ver-se-ia o destino mexendo seus pauzinhos, a fatalidade calculando seus desígnios; alguns riscos sobre um mapa mostrariam as paralelas rancorosas que traçaram com seus rastros durante quinze anos, naquela tarde convergindo na pracinha devido a um cochilo da improbabilidade. E o pior deste capricho: nenhum viu o outro até que estivessem frente a frente.
Antes que se vissem, já os moleques se embrenharam pelos becos, e as portas e janelas foram se fechando. Como polícia não havia, o medo paralisava quem assistia pelas frestas, pois o desfecho era inevitável e não poderia ser interrompido: o assunto era terrivelmente particular.
O silêncio desses minutos arrastados que antecedem as tragédias existe mesmo, e é ele quem espalha a má notícia. E assim, em pouco tempo, se formou uma assistência, retraída nos anteparos das esquinas, dissimulada nos desvãos, nos balaústres, expectando ferro e pólvora.
Aprígio tinha suas cicatrizes morais e uma cicatriz medonha, real, de bordas salientes, que sangrava quando as lembranças vinham fortes, quase uma menstruação que lhe renovava o fértil útero da vingança. A cicatriz era um O quase perfeito, considerando-se as poucas letras do escritor, um terceiro olho afixado em sua testa pelo punhal rombudo de Antunino.
Antunino também tinha a sua, uma cruz não menos grotesca, mal escrita, profunda, roxa e torta, que ele carregava rancoroso e envergonhado.
Cada um guardava ódio ao outro na proporção da humilhação que imaginavam ter sofrido. O que Aprígio carregava tinha-lhe sido imposto numa briga de bêbados, onde Antunino, por pura bazófia e por medo de matar gratuitamente, lhe assinalara como um boi de pasto. Vã glória que lhe custou anos e anos de vida sobressaltada e fuga da vingança.
Anos depois, num descuido de retaguarda, num cochilo da vigilância, Antunino recebeu a marca daquela cruz, anestesiado pelo medo, ao se ver subjugado pelo ódio de Aprígio. Naquele momento, pensou que a morte era coisa de minutos. Não foi. Após caligrafar a sua marca na testa de Antunino, Aprígio lhe falou já quase calmo:
- Você tem seis anos, três meses e doze dias de vida. É o tempo que eu passei com sua marca. Você vai passar o mesmo tempo com a minha. Nesse tempo, você pode passar na minha porta, pedir água na minha casa, até me provocar que eu não vou levantar minha mão para você. Depois disso, eu vou caçar você. Vou sangrar você como faço com os porcos. Não esqueça: seis anos, três meses e doze dias!
Passado esse tempo, começou o martírio dos dois. Aprígio, que era açougueiro de porcos e cabritos, já não pôde oferecer carne de porta em porta, nem fazer, sem sustos, a entrega habitual de seus fregueses. Antunino, que comerciava com tecidos e miudezas, não podia expor suas mercadorias pelas feiras da região, pois no meio de tanta gente, como poderia perceber a aproximação do inimigo? Andar pela cidade era um exercício de sobressaltos, cautelas e excitação. Para se deslocarem com segurança, tinham desenvolvido o faro dos cachorros, a audição das lebres e o tato dos deficientes visuais.
Dormir, mesmo dentro de casa, com portas e janelas aferrolhadas duplamente, era sempre um sobressalto: coisa de meio sono, de sono inteiro com um olho só. Os dois se sentiam caçados, cada um sendo caçador. Quando se caminha em círculo, quem vai à frente e quem vai atrás?
Gastaram anos no estudo dos movimentos um do outro, de tal forma que cada um deles sabia mais do outro do que de si próprio. E tinham espias. Gente que dava notícias do trajeto e descaminhos de cada um, numa batalha de espionagem e contra-espionagem que, de tão perfeita, se anulava. Os dois faziam sua guerra fria particular, terrível e cheia de tensões, como se cada um carregasse no bolso da algibeira uma ogiva nuclear.
Apesar das tentativas de conciliação, dos terceiros que tentavam evitar a hecatombe, o ódio parecia recrudescer. De pouco adiantaram os embaixadores, os conciliábulos, as mesas-redondas. Os dois grandes lá não compareciam, e tudo continuava como antes.
Os serviços de inteligência de ambos funcionavam a pleno vapor. Não estancavam os relatórios:
- Ele comprou uma mauser nova!
- Ontem trocou o trinta e dois antigo por um trinta e oito quase novo!
- Treinou pontaria com muitos tiros no quintal da casa!
- Viajante lhe trouxe um punhal de aço inoxidável!
Até agentes infiltrados possuíam. Quinta coluna, agente duplo. Gente que queria ver o circo pegar fogo.
Quando os familiares reclamavam da exacerbação do conflito, da necessidade de paz, dos prejuízos econômicos que aquela guerra provocava, eles respondiam com uma retórica estratégica que, traduzida nas devidas proporções, significava exatamente coisas como: poder de retaliação, ataque preventivo, a paz na guerra, equilíbrio de forças, e vocabulário semelhante.
Isto tudo continuou até aquele dia, quando, sem querer, encontraram-se frente a frente, ali, na praça. Seria a hecatombe? Qual dos dois sucumbiria? Pelo arsenal de ódio acumulado durante tanto tempo, era de se esperar a morte dos dois, e dias de lamúrias e orações a leste e a oeste.
Quando viu o inimigo frente a frente, Antunino quis gritar alguma ofensa, mas as palavras quiseram sair todas de uma vez e atravancaram-se antes de chegarem à boca, e ele só conseguiu emitir grunhidos e bufos enquanto seu rosto adquiria aquela cor cerosa, âmbar, própria das horas decisivas e terríveis. Aprígio também não conseguiu articular seu grito primal, vomitar os sons da guerra: maquiou o rosto com a mesma cor usada por Antunino e teve um acesso de tosse intenso, porém breve.
Sacaram as armas quase ao mesmo tempo: a mauser niquelada e pálida mirou seu olho frio sobre Antunino, enquanto o trinta e oito, bojudo, grávido de seis filhotes, enquadrava Aprígio na ponta de sua mira empertigada. Agora era só chegar a ordem, a descarga elétrica no tendão do indicador, e a chuva de ogivas daria um ponto final àquela história.
Mas a logística desses exércitos individuais também tem suas falhas. Confundem-se as ordens, desencaminham-se as providências, atrapalham-se as iniciativas, entrechocam-se os bedéis da retaguarda. Pane? Duros ficaram os dois, a platéia sequer respirou. Num, rompeu-se algum fino duto na altura da cabeça? No outro, um destrambelho qualquer no miocárdio?
Miram-se minutos. Longos e agoniados minutos. Tempo de rever o passado em coisa de segundos; sentir, hipnotizado, a moenda da memória vomitar cada coisinha guardada, esgotar a cacimba de ódios, trazer de volta para uma última conferência o quarto de despejo da lembrança.
Sem que ninguém entendesse, as armas inclinaram-se para o chão, e os dois, como se tivessem combinado algo sem dizer palavras, dão-se as costas e saem da arena da pracinha.
Cada um voltou pro seu território, já no caminho refazendo as estratégias, a usina de ódio retomando a sua incessante fabricação de espuma e bílis, cada um organizando o tempo que teria ainda para se dedicar a lamber a doce rapadura da vingança.


Geraldo Maciel

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