23.8.08

FOLHETIM # 2


UMA HISTÓRIA DO CONTO – PARTE 1

Guillermo Cabrera Infante

O conto é tão antigo quanto o homem. Talvez até mais, pois podem muito bem ter existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos, que são a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, melhor; três grunhidos já são uma frase. Assim nasceu a onomatopéia e com ela a epopéia. Mas antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso não é um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção.
Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na memória coletiva.
Séculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo branco e o converteu em mito ao chamá-lo unicórnio. Embora a experiência fosse alheia, tomou e fez seu o tema do unicórnio perdido. Muitos séculos mais tarde, outro contista enfeitou com metáforas (isto é, embelezou poeticamente) esse animal único com seu único chifre. Passados outros tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever (e, é claro, a ler), e outros animais e outros homens que se transformavam em animais povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era essa transcendência chamada religião.
Em outro século, quando outros homens já não acreditavam nessa religião de deuses tão humanos que se confundiam com os simples mortais, um deles, um poeta chamado Ovídio, escreveu As Metamorfoses. De religião, esses textos não tinham mais do que aqueles primeiros contos contados em volta de uma fogueira numa caverna. Isso fez do conto o gênero literário mais antigo e mais protéico.
Protéico, como se sabe, vem de Proteus, deus grego que estréia na cena olímpica com a "Odisséia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de tudo, mas mudava de forma para não ser interrogado. Isto é, fazia o contrário de um autor atual, que nunca muda de forma, mas procura sempre ser interrogado: pela imprensa, pelo rádio e pela televisão - e, às vezes, pela polícia. Creio desnecessário frisar que Proteus era uma metamorfose feita deus. Proteus está muito perto de prosa, que é o que os contistas cultivam. Protéico, prosaico - dá na mesma.
Os gregos, além de Homero e sua Odisséia, cultivavam o conto, e um romancezinho, que é o que é Dafne e Cloé, publicado no segundo ano da nossa era, foi seu provável precursor.
Mas são contos os fragmentos que fazem do Satyricon, de Petrônio, um romance, e um de seus mais memoráveis é aquele intitulado "A Viúva de Éfeso", um conto perfeito e muitas vezes citado, copiado até. Entre outros por Jean Cocteau, poeta tão teatral que transformou o conto em peça, ganhando-o para o teatro. O conto, logo protéico, parece desaparecer na Idade Média, mas na verdade se veste com os versos do romance, seja nos "romans courtois", onde aparece como história de aventuras, seja no "Roman de Renart", em que serve a um fabulário, não longe do zoológico de Esopo. Na saga arturiana (que não se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas), o romance adquire um tom mágico, quase místico, que lhe é exclusivo. Mas a história paralela do amor fatal de Tristão pela bela Isolda é, como quer Bédier, um conto de amor, de loucura e de morte cuja aura mágica não fica nada a dever aos modelos gregos e romanos. Mas o conto, sempre recomeçado, reaparece onde menos esperariam os trovadores medievais: no Oriente.
Caricatura de David Levine (New York Review of Books)

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