10.9.08

CONTO


O OLHO


Geraldo Maciel

Perdi o olho direito em uma brincadeira com meu gato de estimação. Doeu um pouco, senti que as coisas, apesar de inteiras, me chegavam pela metade, e, afora a dor inicial, quando o globo ocular vazou como uma bexiga perfurada, não tive vontade de matar o gato. Perder o olho não era uma coisa grave.
Depois que a ferida cicatrizou, após a retirada do curativo que evitava contaminação, fui à farmácia e comprei um olho, uma dessas maravilhas da farmacologia moderna.
Em casa, destampei o vidro, suguei o líquido, quase uma pasta, e coloquei as quinze gotas recomendadas na cavidade ocular. Senti uma ardência inicial, já prevista e alertada na bula, e esperei cerca de um minuto sem fechar a pálpebra. Pronto: eu tinha um olho novo, um olho, cinza-esverdeado com raias amarelas.
Por ironia do destino, engano da balconista ou ato falho meu, comprei, sem querer, um olho de gato. Notei depois, ao ler os detalhes impressos na caixa do remédio. Não me incomodei. Estava vendo bem. Dizem que o gato tem uma excelente visão, sendo extremamente apurada sua visão noturna; tem a desvantagem de não permitir uma acurada variação de cores, mas para quem é míope isso não ia fazer muita diferença.
Dizem que os gatos guardam os raios da aurora para exibi-los à noite. Não senti nada de diferente, talvez porque esse novo olho ainda não havia visto uma aurora. Amanhã, quem sabe... Senti, no entanto, que meu campo de visão era mais amplo e que podia perceber qualquer movimento ao meu redor, por menor que fosse.
Ninguém percebeu a mudança. Só o gato que, a princípio, olhou-me meio espantado, eriçou os pelos e exibiu seus dentes afiados como se me desafiasse. Eu também senti um arrepio, mas não cheguei a rosnar para ele. Senti, isso sim, certa ausência de privacidade, um sentimento de perda, coisa que só mais tarde pude confirmar com absoluta certeza.
Entrei no banheiro e demorei mais que o habitual sob o chuveiro. Mesmo depois que me enxuguei com a toalha, senti uma estranha vontade de lamber algumas partes do meu corpo que eu julgava não completamente limpas. Dormi sem ligar a televisão e enrosquei-me com a cabeça apoiada nos braços dispensando o cobertor. Sonhei com gatas e ratos.
No dia seguinte, acordei ainda de madrugada, contra meu costume de acordar mais tarde, e fiquei esperando o sol nascer. Queria ver a aurora. Queria guardar os seus raios amarelos nos olhos, ou no olho, para ver o que aconteceria à noite.
Fui à geladeira, peguei o leite e uns biscoitos e coloquei na vasilha do gato. Estranhamente, tomei alguns goles do leite gelado, coisa que eu detesto ou detestava, e mastiguei alguns biscoitos. O gato, que até aquele momento havia se escondido não sei aonde, chegou à cozinha e, ao me ver com sua vasilha de leite, pulou rosnando raivoso sobre mim e quase me arranca o outro olho. Quando consegui atirá-lo a um canto e sair da cozinha, tinha os braços e o peito arranhado pelo meu bichano de estimação que agora me detestava.
Percebi tudo. Com o olho que eu agora possuía, eu deixei de ser dono e agora era um concorrente. Os gatos são animais absolutamente territoriais e não abrem mão de seu espaço facilmente. Teria que resolver isto rapidamente: agarrei o gato, anestesiei-o com éter, arranquei-lhe os dois olhos.
Quando as órbitas do gato sararam, comprei-lhe dois olhos humanos. Agora, reina a paz aqui em casa. À noite, após tomar meu pires de leite com biscoitos, saio pela janela e vou caçar pelos becos e vielas escuras, guiado pelo faro de mulheres com mêstruo recém-findo, enquanto o gato cochila em casa frente à televisão.

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