18.1.09

PECCATA MUNDI - Romance Prêmio Literário Cidade do Recife - 2008 PRIMEIRO CAPÍTULO


1


Era o ano da graça de 1800 e tantos, soprava uma brisa quente e cheirosa pelas ruas da cidade de Parahyba naquele fim de manhã, quase meio-dia, e essa tal brisa, perfumada pelo cheiro das mangas, mangabas, oitis e araçás, foi encontrar o padre Leocádio Carrão Brindeiro sentado à testa da mesa de refeições, arfando, a boca cheia com um naco generoso de uma coxa de galinha e o rosto sujo de farofa. Sua cara quase chafurdava no prato que comia, e suas mãos nervosas espalhavam restos de comida sobre a toalha, já suja e engordurada.
Vestia uma batina surrada, apesar de ser um homem rico, e trazia um pano de prato, também já sujo e encardido – ao modo de um guardanapo – atado ao pescoço, adereço de todo compatível com a porcalhada que fazia na mesa à sua frente.
Enquanto mastigava com pressa, a cozinheira entrou na sala e lhe disse ao ouvido, como se ele fosse surdo:
– padre, tem uma pessoa aí fora querendo falar com o senhor. É um emissário do senhor de engenho, o Major Florentino.
Sem parar de mastigar, o padre disse à cozinheira para mandar o rapaz esperar, enquanto limpava a boca com o tal guardanapo e tentava suavizar um arroto que denunciava o quanto já se empanturrara.
O padre, apesar dos sessenta anos já vividos, era um homem ativo, forte e corpulento. Além de oficiar os sacramentos que o dever lhe impunha – mesmo que algumas vezes os achasse excessivos – cuidava de duas fazendas no Brejo, e de uma próxima à vila do Pilar, todas elas com engenho, cana, gado e escravos. Como um grande proprietário, comprava e vendia boiadas, exportava açúcar, fabricava rapadura e cachaça, emprestava dinheiro a juros, que alguns achavam extorsivos, tinha comissões em negócios que os inimigos achavam duvidosos, mantinha, supria e dava assistência a três casas, onde mantinha três amásias com quem ajudava a povoar a província da Paraíba do Norte.
Nos atropelos de suas múltiplas atividades, padre Leocádio havia esquecido os votos de castidade em algum canto por aí e não lembrava mais onde os havia deixado. Uma vez perdido o voto de castidade, não foi difícil perder todos os demais, à medida que ia encontrando as coisas que a vida podia lhe oferecer. Foi assim com relação ao celibato, foi assim com relação à pobreza, à parcimônia e à temperança.
Ninguém mais que ele levava a sério a exortação crescei e multiplicai-vos. Tanto que, da parte que lhe cabia, apesar dos esforços que tais proezas exigem, já havia posto no mundo dezoito filhas – das quais seis haviam morrido muito cedo – desgraciosas, ou melhor, dezessete, pois a décima oitava, Maria Esplendorosa, era delgada, graciosa, e bela como um amanhecer.
Por serem tantas e morarem em casas diferentes, ele, como pai, só as via duas vezes por semana, umas às segundas, outras às quarta, o restante às sextas, e aos domingos quando as via reunidas na igreja. As desobediências a esse calendário só ocorriam quando o padre tinha que viajar para vistoriar suas fazendas e conferir o andamento dos seus negócios. Nos intervalos, tentava manter acesa a chama da fé que, naquela época, ali na capital da província, bruxuleava e às vezes quase apagava por completo. Se tal chama amortecia, mas não apagava, isto se devia aos cuidados que a ela devotava o nosso guloso pároco.
Na segunda-feira, após o café da manhã, na casa da amásia número um, parte de suas filhas fazia uma fila para beijar-lhe a mão e pedir-lhe a benção. Sua benção, meu padre. Deus lhe abençoe Maria da Paz. E se seguiam Maria Dolores, Maria Anunciada, e Maria Concebida; na quarta-feira e na segunda casa, abençoava Maria das Graças, Maria das Vitórias, Maria do Amparo e Maria do Perpétuo Socorro; e na sexta-feira, abençoava Maria da Luz, Maria da Conceição, Maria das Dores, também conhecida como Maria, a horrorosa, e Maria Esplendorosa, que todos chamavam de Maria, a bela.
Normalmente Maria Esplendorosa era a última a lhe pedir a benção, coisa que lhe enchia os olhos e lhe apascentava o coração. Quando olhava sua linda filha, sempre dizia consigo mesmo: vou arranjar um bom casamento para você, minha filha!
No momento, porém, ele estava na casa paroquial, ainda sentado à mesa, rodeado de ossos de frango, sujo de farofa, ruminando a última porção do prato enquanto o trabalho de digestão lhe retirava qualquer vestígio de pensamento da cabeça. O torpor que normalmente sentia após a refeição não o impediu de lembrar que ainda teria de atender ao emissário do Major Florentino que o esperava.
“Que pode querer o Major para me mandar um recado a esta hora?” Pensou enquanto dava mais um arroto, empurrava a cadeira para trás e levantava. Retirou o guardanapo do pescoço, atirou-o sobre a mesa e dirigiu-se para a sala.
° O emissário esperava. Ao vê-lo, levantou-se, fez uma reverência, pediu-lhe a benção e beijou-lhe a mão, ainda com resquícios de cheiro do frango e da farofa.
– Deus te abençoe – disse o padre de forma displicente –, que deseja o Major Florentino?
– Ele pede que o reverendo padre, logo que possa, vá até sua casa para tratar de um assunto urgente.
– Diga ao senhor Major que no fim da tarde, sem falta, estarei lá. E com um sinal da cruz mal traçado no ar, despediu o serviçal.
Tão logo o emissário saiu, o padre dirigiu-se para o quarto onde o esperava uma rede, lugar de sua sesta habitual, ocasião em que, com calma, faria sua trabalhosa digestão e que, de acordo com o estado de seus intestinos, lhe proporcionaria um sono leve ou pesado, acompanhado de seus inseparáveis sonhos, normalmente pesadelos, os pesadelos do padre Carrão.
Antes da chegada do sono, no entanto, o vigário pensava nos negócios, fazia balanços mentais do crescimento do seu pecúlio, imaginava formas de casar as suas filhas, algumas delas com poucas chances de que isto viesse a acontecer, e o quanto teria de perder com os dotes. Umas porque a idade já as colocava no grupo daquelas a quem só restaria rezar, fazer bordado e tecer maledicências sobre a vida alheia; outras porque a beleza não lhes havia premiado com um quinhão capaz de atrair pretendentes; outras porque tiveram a infelicidade de reunir as duas qualidades. Tanto que entre as doze o padre esperava casar umas três ou quatro, sendo que só a mais nova, Maria Esplendorosa, a bela, podia estar segura de ter o casamento garantido.
Depois destes pensamentos, vieram aqueles momentos de dormência e abobalhamento, aquela flutuação na semi-inconsciência que o sono de barriga cheia traz. E apareceram os bois gordos flutuando sobre o capim, as patacas jorrando por uma biqueira diretamente sobre seus baús já repletos, a garapa do engenho correndo transparente como ouro líquido, montanhas de tonéis e bordalesas cheias de cachaça, pirâmides de rapaduras.
O padre foi entrando naquele mundo brumoso, e quanto mais nele penetrava mais se afastava da visão de sua riqueza e seguia por um estreito corredor em cuja entrada havia uma tabuleta onde se lia: Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!
Lembrou já haver lido aquela frase, se a memória ainda lhe valia, em um dos cantos da Divina Comédia, no Inferno, tinha quase certeza. Ali, porém, ninguém o acompanhava, e o que sentia no sonho era dez vezes mais aterrorizante do que poderiam ser os versos do grande poeta. E o corredor ficava mais escuro e comprido.
No fim do corredor voltou a claridade, e o monsenhor foi agarrado por dois frades encapuzados e levado a uma pedra quadrada e lisa, semelhante aos altares pagãos dos incas e astecas, em tudo lembrando um altar de sacrifícios. A pedra estava recoberta com uma crosta de sangue coagulado e exalava um mau cheiro quase insuportável. O padre teve ânsias de vômito, depois fortes engulhos que lhe trouxeram as tripas até à boca.
Diante do altar, em um plano mais abaixo, havia uma multidão a gritar, pedindo ou dando a entender que queria ver alguma coisa excitante, algo como o desfecho final daquela cerimônia, que o padre Carrão sabia ser um sacrifício, uma execução.
O aflito padre Carrão estava vestido com uma batina nova e portava os paramentos sacerdotais como se fosse celebrar uma missa. Atrás de si, ao invés dos coroinhas, estavam os dois frades encapuzados que o seguravam, e um terceiro que balançava um turíbulo ou incensório do qual saía uma fumaça de cheiro adocicado que mais aumentava seus engulhos.
A multidão, que se esgoelava esperando o desfecho da cerimônia, era formada por escravos, cabras de eito, soldados, vendedores, prostitutas, mercadores de escravos, enfim aqueles que o vigário chamava a chusma, a descendência dos degredados a quem ele tinha a difícil missão de salvar do fogo do inferno. E esses mesmos pareciam querer, aos gritos, condená-lo.
Foi colocado de pé, de costas para o público que urrava fazendo um barulho ensurdecedor. Diante de si viu sete sacerdotes sentados, cujas expressões e pompa indicavam ser aquele uma espécie de tribunal, membros do Santo Ofício, da Santa Inquisição. Ao vê-los pensou: “O tribunal dos pecados capitais!” Um, o de cara zangada, julgaria a ira, outro a soberba, outro inveja, o gordo julgaria a gula, outro a luxúria, o sexto o orgulho, e o sonolento a preguiça.
À sua frente um frade segurava um grande rolo de papel e, com ares de mestre de cerimônia, começou a ler o grande pergaminho que se desenrolava até o chão. Padre Carrão tentou ouvir o que ele dizia, mas da boca do frade não saía nenhum som.
A multidão silenciou para ouvir aquilo que não chegava aos ouvidos do nervoso vigário. Tudo levava a crer tratar-se dos autos de um processo, um rol das acusações que pesavam sobre ele. Finda a leitura, os sete frades se levantaram e, um a um, emitiram a sentença, cada um elevando o braço à altura do rosto e, num gesto brusco, virando o polegar para baixo. O padre achou que ia ser atirado aos leões. A multidão voltou a urrar, agora com mais intensidade.
Os frades encapuzados o amarraram à pedra fedorenta. Agora, olhando para o céu, com nuvens ligeiras passando lá em cima, o padre só podia ouvir a gritaria da multidão e, em primeiro plano, os rostos dos dois frades encapuzados.
Quando a barulheira já se elevava a um ponto em que quase nada mais se podia ouvir, o padre Carrão viu entrar no seu campo de visão um outro frade, este de batina branca e barba aparada, com um nariz muito parecido com o bico de uma águia, que o olhava de forma fixa com seus olhos brilhantes. Não dizia palavra. Quando este frade se adiantou, ele viu em sua mão uma machadinha cuja lâmina rebrilhava ao sol como uma jóia. Ao ver o rosto, a machadinha, e sentir o brilho dos olhos do frade de batina branca, o padre Carrão exclamou: Torquemada!
Padre Carrão suava e tremia. Temeu ter, ali mesmo, uma incontinência urinária, ou outra, mais pastosa e menos inodora, e teve a impressão de ver um leve sorriso no rosto do frade quando este levantou lentamente a machadinha prateada. Padre Carrão quis fechar os olhos, mas não conseguiu. Quis se soltar daquelas amarras e não conseguiu. Quis gritar e não conseguiu.
Então, viu com horror a machadinha descendo em direção ao seu pescoço bem devagar, como se fosse um movimento em câmara lenta, como pensaria o padre se naquele tempo já houvesse sido criado o cinema, e na hora exata em que a lâmina tocou o seu pescoço, a empregada ouviu um grito desesperado vindo do quarto e disse para a sua ajudante: o padre Carrão acordou!

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, Barreto. Me bateu a curiosidade de ver o desenrolar dessa história, aliás, bem escrita.
Dôra Limeira

Anônimo disse...

Parabéns Barreto,

você já estava por merecer de há muito um Prêmio Literário destes!
Adorei, saboreei mesmo o primeiro capítulo, postado aqui no site: muito bom!
e pra você eu posso dizer né, que se não fosse bom eu te diria pessoalmente e silenciaria aqui, certo?
Abraços

Paulão